Por Ricardo Cortez Lopes*
Tendemos a não gostar do que nos parece falso. Isso se aplica a pessoas e também a situações. Porém, existe um tipo de falso que podemos até mesmo simpatizar, que é aquele que acha que é aquilo que não é. Por exemplo, Dom Quixote de la Mancha, clássico da literatura universal.
Imagem 01: Capa do livro "Dom Quixote de La Mancha"
No clássico de Cervantes, o moderno acha que é um cavaleiro medieval e sofre as consequências em um mundo institucionalizado. São criadas situações divertidas, ainda mais quando se compara com os romances de cavalaria, onde o herói realmente era sobre-humano. O personagem foi tão icônico que utilizamos o termo "Quixotesco" referir a situações semelhantes.
Personagens assim também acabam nos cativando na medida em que nos causam riso, mas ao mesmo tempo não queremos que eles se decepcionem — ou o encanto cessará. De fato, Quixote morreu pouco depois do desfazer da sua ilusão, tornando-se um homem comum.
Eu tenho a teoria de que esse personagem é tão marcante que poderia ser até um dos arquétipos lacanianos originais. Afinal, ele é parecido com o do herói, mas não é bem o do tolo, já que ele não coloca como alguém inculto, ele jura não o ser. Ele quer ser o herói, mas não o consegue, apesar de nem sempre ser completamente inapto, só não é extraordinário.
Alguns personagens quixotescos são os seguintes: Chapolin Colorado (inclusive o abordei num capítulo de livro), Darlene (da novela brasileira Celebridades, mas ela chegou a ficar famosa) e um outro é Michael Scott, da série "The Office" (2014-2019). Esse eu quero abordar um pouco mais nesse texto.
Imagem 02: Michael Scott
Michael acaba querendo ser um líder infalível no meio executivo. Porém, ele apresenta uma insegurança que também o faz querer ser aceito, então ele faz brincadeiras de mal gosto quase o tempo inteiro. Como ele concorda com a ideia de que humor não tem limites, o personagem acaba criando um "humor da dor": é tanta vergonha alheia que sentimos que isso nos causa um desconforto muito forte em acompanhá-lo.
Essa vergonha acontece porque o conteúdo das brincadeiras é completamente estereotipado, mas Michael, com o passar dos episódios, vai compreendendo que isso é inadequado para aquele contexto social, que é diferente da década de 80 e 90.
Esse processo fica bem evidente pela linguagem da série, que é documental. Assim, o diretor faz perguntas aos personagens e conhece seus pensamentos. Dessa maneira, sabemos o que está sendo escondido da convivência daquele grupo, o que nos faz quase antropólogos daquele coletivo. Mas se Quixote estava com a visão encoberta pelos véus da loucura, Michael não está. Em diversos momentos ele é desrespeitado e fica muito triste ou constrangido, e nesse momento ficamos com muita pena dele — e os personagens também buscam o consolar.
Isso acontece porque, afinal, o documentário mostra apenas os momentos em que não está ocorrendo o trabalho oficial, a caixa preta está fechada — quem quer assistir a rotina do escritório? Porém, com certeza ele trabalha bem e com qualidade, pois várias vezes são passados números de bons resultados ao longo da série, e sabemos que seria muito fácil substituí-lo, ainda mais em tempos de liquidez. Assim, Michael parece querer ser uma espécie de “guru-líder bem-sucedido e amigável”, tentando ser um self made man. Mas ele falha em quase tudo — os funcionários não são seus amigos, seus ensinamentos são desprezados e ele possui um salário baixo. Mas ele segue agindo como se o fosse, e ficamos com pena quando a realidade bate a porta.
E você, já viu essa série? O que achou? Achou ele Quixotesco também? Comenta aí e vamos trocar uma ideia.
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* Escritor e Pesquisador. Doutor, Mestre e Graduado em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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