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O MONSTRO DE ÁCIDO

Por Felipe Gruetzmacher*


Chae Sang, assistente social, estava em seu escritório refletindo sobre a ineficiência do seu trabalho. Ele tinha finalizado um projeto de inclusão produtiva por falta de verbas. Neste momento, entra o chefe de Chae. A liderança percebe a frustração nos olhos verdes do profissional e logo dispara uma fala angustiante:


— Entenda uma coisa, Chae. O dinheiro move o mundo. Sem verbas, o projeto de inclusão produtiva não obteve êxito. É natural. Além do mais, muitas pessoas que gostariam de participar do projeto não se enquadram dentro do público almejado.

A resposta de Chae foi rápida e desmontou o argumento do chefe:


— A verba mais curta seria um ótimo pretexto para alterar e inovar o projeto social. Tinha algumas ideias criativas para superar essa barreira financeira. Nós poderíamos atender as pessoas que não se encaixam no público pretendido com um mínimo de estratégia e mudança no plano. Não podemos nos deixar paralisar pela burocracia!

Neste momento, o chefe se limitou a sair do escritório, sem saber o que falar. Não queria admitir a derrota. Todos os anos, Chae bate de frente com as estruturas burocráticas e exige mais do que o esperado. Ao cair da tarde, Chae refletia sobre sua vida e profissão. Funcionário do Estado, operava e trabalhava para conservar fisicamente a força de trabalho ameaçada pela superexploração. Noutras palavras, enquanto a classe trabalhadora era submetida a condições degradantes de trabalho e exploração constante, o serviço social oferecia respostas paliativas para mitigar esse cenário. Tudo era efetuado para garantir a reprodução da sociedade administrada pelo capital e o mercado. Por meio de políticas sociais, a classe trabalhadora era atendida, sem que isso afete ou impacte a natureza contraditória do capitalismo. Ele lidava com a tragédia de não oferecer respostas mais aprofundadas para as sequelas da questão social. Na prática, isso significa precisar lidar com problemáticas particulares, como o desemprego, a fome, a carência habitacional e demais consequências da produção de riqueza e a acumulação dessa riqueza por uma minoria. Chae sente uma angústia e uma tristeza tomarem conta dele.


Logo, anoitece. O frustrado e idealista assistente social vai para casa. Assim que se aproxima da porta de entrada, ele desmaia. Seu café da tarde foi envenenado secretamente. Quando acorda, Chae está numa fábrica suja e abandonada. O terrível cheiro de fuligem e graxa queimam seu nariz. A pouca iluminação castiga os olhos. A grande extensão física da fábrica faz com que ele se sinta pequeno, diminuto. Chae está amarrado por fortes correntes e deitado no chão fabril encardido. Um grupo de quatro homens e um tonel metálico estão próximos dele. Ele reconhece o quarteto. São criminosos. Perseu Georgiou, o líder dos bandidos, se aproxima dele e pergunta:


— Você sabe que vai morrer, não é? Você tem sido uma pedra no sapato de muita gente poderosa com seu jeito teimoso de querer apoiar a comunidade… Isso atrapalha os negócios de venda e compra de drogas… Sua execução será bem simples. Vamos mergulhar você num tonel cheio de ácido. Enquanto o ácido corrói sua carne, vamos filmar e disponibilizar o vídeo para o mercado clandestino. Sua morte vai ser um espetáculo para sádicos telespectadores.

Chae, paralisado por correntes e entorpecido por drogas, restava-lhe apenas a espera; o fim, ainda distante, parecia zombar dele. Perseu decidira adiar sua execução; antes dele, outro homem — Costa, rival abatido de uma gangue oposta — seria o primeiro a mergulhar no inferno químico. Chae assistiria Costa ser mergulhado no tonel de ácido para morrer corroído. Depois, seria a vez dele. Toda essa carnificina seria filmada e, posteriormente, distribuída em vídeo para a satisfação e o entretenimento doentio de uma obscura audiência. Chegou a vez de Costa. Ele estava amarrado com correntes e amordaçado. Então, os homens de Perseu mergulharam o assassino rival no tonel. O ácido corroeu a pele e a carne dos pés e das pernas, enquanto Costa era afundado cada vez mais. O corpo e a roupa eram destruídos, sem que Costa pudesse gritar. Só os gemidos de dor preenchiam o lugar. Já Chae chorava estimulado pela entorpecência e um crescente terror. Enquanto o horror se desenrolava diante de seus olhos, a mente de Chae fugia para o território das ideias; percebia-se como peça de um mecanismo que apenas remendava as feridas de um sistema doente; seu ofício, tão nobre na aparência, servia à manutenção da engrenagem que triturava os corpos que ele tentava salvar.


Depois que Costa foi aniquilado, tinha chegado a vez de Chae. Já dentro do tonel de ácido, sentiu uma variedade de estímulos. As carnes eram corroídas. O sangue se misturava com verde ácido. O líquido penetrava no ouvido e narinas, destruindo por dentro e por fora. O frio metálico do tonel contrastava com o calor crescente do processo. A fusão térmica lembrava uma febre. O cheiro enjoativo se espalhava pelo local como fogo em gasolina. A consciência ainda estava presente no corpo em avançado estado de corrosão.


Dois homens tiveram suas memórias e identidades eliminadas. É a dissolução do sujeito na sociedade. Até que um milagre bioquímico aconteceu, após o aniquilamento do corpo de Chae. O ácido, antes apenas um líquido letal, começou a se contorcer como se respirasse; engrossou, ganhou corpo, oscilando entre a fluidez de um veneno e a densidade de um ser vivo; uma massa verde, pulsante e viscosa emergiu do tonel, cuspida como um parto químico. Ela estava viva! Ninguém podia explicar essa quebra das leis naturais. Tinha as consciências de Costa e Chae presentes em seu corpo gosmento. Os três, as consciências e a bola pegajosa eram uma só unidade. Tomados pelo susto, os homens de Perseu abriram fogo contra a monstruosidade. As balas ficaram presas no interior da gosma, sendo derretidas por um poder corrosivo descomunal. A consciência de Costa desejava comandar o novo corpo, a bola de ácido viscoso, para atacar Perseu e seus homens. Almejava vingança. Já a consciência de Chae tinha um posicionamento mais sensato: ela se perguntava como seria a vida deles daqui para frente, já que eles estão numa nova e estranha condição. Nem podiam tocar nas coisas sob o risco de corroê-las e destruí-las. Enquanto Perseu e seus homens fugiram, a batalha mental entre Costa e Chae atingiu um pico máximo: ambas se anularam. O monstro ácido permaneceu inerte no chão da fábrica abandonada, sem propósito ou motivações. A substância se aquietou, mas a pergunta sobre o que ele dissolveu de fato — carne ou consciência — continua sem resposta.



Insights e reflexões acadêmicas sobre o conto


A monstruosidade, aqui, não é apenas biológica; é também social e simbólica. Como observa Suzana Nascimento Veiga em seu artigo “Uma reflexão sobre crimes de Guerra e memória coletiva a partir do Kdrama ‘A Criatura de Gyeongseong’”, a arte pode funcionar como resistência diante da barbárie. O que restou na fábrica foi mais que um corpo deformado; foi a imagem de um sistema que consome seus idealistas até dissolvê-los; talvez a arte sirva justamente para não nos deixar esquecer que o horror é uma construção humana. A arte pode servir para entretenimento vazio ou provocar a reflexão. Na história do Monstro de ácido, mortes são transformadas em espetáculo voltado para um nefasto mercado clandestino. Já no artigo escrito por Suzana, a arte é posicionada como engajamento e memória de resistência. Afinal, o artigo menciona o seriado “A Criatura de Gyeongseong” que traz implicitamente críticas à violência da guerra sino-japonesa. Sendo incômodo, reflexão, fomento de indagação ou divertimento passivo, o artístico sempre estará presente no nosso dia a dia.


Já as preocupações profissionais de Chae dialogam com o artigo “A estrutura sincrética do serviço social no pensamento de José Paulo Netto: Primeiras Aproximações”, de Iara Borges Barbosa. Tanto no artigo quanto na rotina de Chae, o Estado opera e atua para conservar fisicamente a classe trabalhadora ameaçada pela superexploração. Assim, ele consegue apoiar a reprodução do capital, amortecendo as sequelas da questão social. Esse fato afirma a natureza contraditória do capitalismo: cria e recria a questão social, oferecendo respostas fragmentadas para a sequela dela. Nisso, essas mesmas sequelas (consequências) são apresentadas como “problemas sociais”, erroneamente tidas como partes separadas do todo. Ora, só é possível examinar os problemas sociais como desemprego, a fome e a falta de escolas entendendo a origem em comum, a questão social, por exemplo.





* Formado em Gestão Ambiental (SENAI), com especialização em Educação Ambiental (UNIASSELVI). Possui cursos em Marketing Digital, Copywriting, Sustentabilidade e Revisão de Conteúdo para Web, com destaque para formações na Rock University, Universidad de los Andes e Universidad de Chile. É autor do livro “O Relato de um Ciborgue” (Editora Simulacro) e atua com acessibilidade comunicacional, conteúdo inclusivo e marketing verde.

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