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Suzana Nascimento Veiga

UMA REFLEXÃO SOBRE CRIMES DE GUERRA E MEMÓRIA COLETIVA A PARTIR DO KDRAMA "A CRIATURA DE GYEONGSEONG"

Atualizado: 10 de jan.

ALERTA DE CONTEÚDO SENSÍVEL (O TEXTO TRATA SOBRE DIVERSAS FORMAS DE CRIMES DE GUERRA)!!!



Por Suzana Nascimento Veiga*


Nos últimos cinco anos, a Coreia do Sul tem sido meu alvo de pesquisas. Entre as linhas que busco conectar, sem dúvida, estão a da História e do Audiovisual. O cinema e a TV sempre fizeram parte do meu interesse tanto como hobby, quanto como espaço de debate e discussões sobre as questões sociais e políticas, seja no Brasil ou em outras partes do mundo.


No final do ano passado, duas produções sul-coreanas me chamaram a atenção devido à abordagem de problemas sociais: “Deaths’s game” e “A criatura de Gyeongseong”, mas nesse artigo pretendo falar apenas desta última.


Figura 1: A criatura de Gyeongseong (fonte: google)


Composta por 10 episódios, a série é roteirizada pela brilhante Kang Eun Kyung e está sendo exibida pelo serviço de streaming da Netflix. Ela foi lançada em duas partes: a primeira, com 7 episódios, em dezembro; e a segunda, contendo os 3 episódios finais, foi lançada no dia 05 de janeiro de 2024.


O plot da série gira em torno de dois protagonistas vivendo na Gyeongseong (atual Seul) ocupada pelos japoneses. Chae Ok, uma detetive que vem com o pai à cidade para investigar pistas sobre a mãe desaparecida há 10 anos, e Tae Sang, um jovem boêmio e rico que se envolve com a esposa do chefe de polícia da cidade e, assim, passa a ser chantageado por esse para que encontre sua amante que está desaparecida. Tae Sang tem o tempo contado para descobrir onde a moça está ou perderá toda a sua fortuna e sua vida. A busca de ambos vai levá-los a adentrar num complexo hospitalar/militar que conduz experimentos humanos horrendos nos coreanos pobres.


Queria comentar diversas camadas possíveis de debates que surgem desse plot, nos diálogos brilhantes que ele traz, mas buscarei me ater a um deles: a questão da ocupação japonesa na Coreia e a denúncia dos crimes de guerra cometidos pelo império japonês no período. Questão que até hoje encontra pouca resposta ou repercussão.


Em termos absolutos, posso afirmar, como historiadora, que o Japão não deixa nada a dever à Alemanha nazista. Os crimes cometidos pelo Japão na guerra sino-japonesa, na colonização da Coreia e durante sua participação na II Guerra Mundial podem facilmente ser equiparados aos cometidos pelos nazistas. Entretanto, parte dessa memória dos horrores, crimes e etnocídio cometidos na região foi sistematicamente abafada por diversas questões políticas, entre elas o horror da bomba atômica.


A criatura de gyeongsang carrega para o lado do horror a história ao mostrar uma criatura gigantesca que se alimenta de seres humanos e os mata implacavelmente depois do uso de um ente bioquímico que se aloja no cérebro de uma mulher coreana e a transforma nesse ser animalesco e assassino. Um monstro construído pelos japoneses. Brilhante, não?


O que a roteirista habilmente transforma numa história de horror fantástico nos conecta aos fios da trama da narrativa histórica real. A protagonista Chae Ok está em Gyeongseong vinda da Manchúria e, em dado momento, já dentro do hospital, ela menciona as “atrocidades cometidas pelos japoneses na Manchúria”. Aqui, ela se refere à base sobre a qual a roteirista construiu a narrativa da série.


Durante a Guerra sino-japonesa, a região da Manchúria foi o local escolhido para abrigar a chamada Unidade 731, um complexo de testes químicos e biológicos conduzidos pelo exército imperial japonês. O responsável pela unidade era o Cirurgião Geral Shiro Ishii, conhecido por conduzir testes de armas biológicas e por ter perpetrado os ataques de peste bubônica às cidades chinesas de Changde e Ningbo.


Figura 2: Unidade 731 (fonte: Google)


Sob o comando de Shiro, a unidade foi responsável por assassinar quase 300.000 pessoas, sendo a maioria de chineses e uma porcentagem de coreanos e russos. Entre os crimes listados pela unidade estavam: experimentos com injeções de doenças, desidratação controlada, testes de armas biológicas, amputação, colheita de orgãos, vivissecção, entre outros. Um dos testes centrais na unidade eram de congelamento, conduzidos pelo fisiologista Yoshimura Hisato. Para quem já viu o seriado, pode perceber como a roteirista foi sutilmente inserindo esses detalhes na série, principalmente nos testes conduzidos com o monstro.


Para viabilizar os testes, homens, mulheres e muitas mulheres grávidas eram sequestrados e levados até a unidade. O coeficiente alto de estupros cometidos pela equipe contra as mulheres levava a que sempre houvesse um grande número de bebês na unidade, que eram também usados como cobaias nos testes executados pelos japoneses.


Figura 3: General e cirurgiao Shiro Ishii que conseguiu imunidade dos estadunidenses (fonte: Getty Images)


O horror desses espaços, juntamente com a memória das atrocidades e crimes de guerra cometidos pelos japoneses, foram ocultados pelos próprios japoneses, bem como pelos norte-americanos após a vitória no pacifico. Parte da equipe médica e dos oficiais foram apreendidos pelos soviéticos e conduzidos a julgamento por crime de guerra, julgamento que ficou conhecido na história como “Os julgamentos de guerra de Khabarovsk”. Já os norte-americanos deram imunidade à equipe e principalmente a Shiro Ishii em troca de bancos de dados e informações dos experimentos e resultados obtidos pelos japoneses às custas de crimes hediondos de guerra.


Embora essa seja a história central para o desenvolvimento do plot de “A criatura de Gyeongseong”, essa é a história de apenas uma das unidades que promovia testes e experimentos em chineses, coreanos e russos. A Unidade 100 e a Unidade 516 possuem dados e números tão alarmantes quanto os da Unidade 731 e foram do mesmo modo convenientemente “esquecidos” após o fim da guerra.


Nesse sentido, um seriado que retoma essa narrativa e adiciona o elemento do terror ao seu roteiro cumpre com a função política de engajar a arte em favor de construção de uma memória de resistência. Até hoje as relações entre Coreia e Japão são problemáticas devido ao Japão se recusar a assumir responsabilidade e construir políticas de reparação para os inúmeros e horrendos crimes cometidos contra a Coreia.


Nesse seriado, a memória dos prisioneiros da Unidade 731, de tantas outras e suas consequências na vida e na história de uma país marcado pelo trauma coletivo de invasões e guerras sucessivas que resultou numa fronteira que rachou no meio seu território, sua história, sua memória e suas famílias, é retomada e posta aos olhos do publico para reflexão.

Entendemos assim como é necessário que a arte esteja, como este seriado demonstra, a serviço do incômodo, da reflexão, de levantar voz e o debate quando as instituições políticas se recusam a falar e rememorar.


O Japão foi responsável por uma tentativa de etnocídio do povo coreano, foi responsável por sequestro, estupro coletivo e por utilização de milhares de mulheres coreanas, tailandesas e chinesas como “mulheres de conforto”, criou campos de trabalho forçado para coreanos (Ilha de Hashima) e ainda assim a opinião publica no japão está sempre revoltada ou cancelando ídolos e atores coreanos quando tocam nesses temas. Então um povo não pode falar sobre suas dores e apontar para quem foi seu causador? O Brasil não pode mais falar de Portugal? Os palestinos não podem mais apontar os israelenses? Apenas os judeus têm direitos de lembrar a memória nazista da Alemanha?


Em depoimento dado à Vice, a professora da faculdade de Arquitetura da USP, Giselle Beiguelman diz:

"A arte opera nos campos de tensões sociais como uma espécie de curativo, ela tem o poder de indicar e catalisar questões pautadas pela sociedade. E, por outro lado, de criar contextos de diálogo e permitir novas formas de construção do presente e, portanto, do futuro".

A arte engajada com a transformação social que, para além de nos fornecer entretenimento de qualidade, enfia a pá nas areias da memória e traz os esqueletos que foram sistematicamente enterrados para que civilizações fossem construídas acima deles, é o que nos move e transforma. Que causa ruptura e comoção. A Coreia já presenciou em diversos momentos o poder mobilizador da arte. A criação e aprovação da Dogani Bill, após o movimento iniciado com o filme “Silenciadas”, os protestos de trabalhadores sul-coreanos vestidos com os uniformes do seriado “Squid Game” e a onda de movimentação feminista após o lançamento do livro de Cho Nam Joo, “Kim Jiyoung, nascida em 1982”.


Figura 4: Protestos de deficientes por melhores condições de vida e garantias de direitos após movimento causado pelo filme (fonte: Korean Herald)


Como cinéfila, vejo todo tipo de filmes e seriados (hoje nem tanto, pois seleciono melhor devido ao tempo reduzido), mas devo dizer que o que balança meu coração são esses projetos que usam a arte como linguagem revolucionária. Por esses e outros motivos, vale a pena ver “A criatura de Gyeongseong”.


Fontes:


Arte: o instrumento da resistência em: Arte: o instrumento da resistência (vice.com)

Korea’s disabled demand better deal em: Korea’s disabled demand better deal (koreaherald.com)

Thousands Of South Korean Union Workers Dressed In “Squid Game” Uniforms Rally For Improved Workers’ Rights em: Thousands Of South Korean Union Workers Dressed In "Squid Game" Uniforms Rally For Improved Workers' Rights - Koreaboo.

The trial of Unit 731 por RUSSELL WORKING disponível em: (Microsoft Word - \304\356\352\363\354\345\355\3621) (narod.ru)



* Pesquisadora, escritora e historiadora. Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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