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A TRISTEZA DAS TRÊS PONTAS DO TRIÂNGULO



Por Thais Klein*

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!


Faz um tempo que gostaria de escrever sobre o filme "Triângulo da Tristeza", de Ruben Östlund – com três indicações para o Oscar de 2023. Finalmente entendo que uma das razões para tamanho impasse consiste justamente no triângulo. Não há saída possível. A crítica se torna um enlatado; a ilha perdida no oceano, uma praia particular de um resort. O filme, dividido em três partes, justapõe-se em uma forma geométrica e nos deixa no centro, sem saída para nenhum dos lados, no triângulo da tristeza.


Logo no início, após acompanharmos mudanças repentinas de expressões, guiadas pela vociferação de nomes de marcas caras e populares, somos dirigidos para um exame detalhado do corpo de um-homem-branco-padrão (Carl). Os responsáveis pela triagem da agência de modelo deixam entrever outro sentido do triângulo: a região entre os olhos de Carl está triste, o triângulo da tristeza precisa de um procedimento estético.


Logo em seguida, a tristeza permanece em mais um triângulo que se forma entre nós e as personagens. Carl e sua namorada (a influenciadora Yaya) iniciam uma conversa sobre poder, gênero, controle, violência – todas essas variáveis (e outras mais) girando em torno do dinheiro. Giramos e giramos e percebemos que não vamos a lugar nenhum; Carl é apaixonado pelo jogo de Yaya e Yaya goza com a disputa vencida. A dinâmica funciona, o casal está junto, caminhamos de um lado ao outro do triângulo.


No próximo capítulo dos três, os triângulos se multiplicam: influenciadora e modelo; casal de senhores simpáticos produtores de armas, russos ricos vendedores de merda (estrume). Todos no mesmo barco, literalmente. Enquanto a tripulação é seduzida pelo suposto glamour do trabalho e pela promessa financeira, a russa produtora de merda discorre sobre a igualdade entre todos. É em nome desse significante que a produtor de merda exige que todos os funcionários do navio se divirtam na piscina. Um a um, em uma fila, os “iguais” cumprem as ordens vindas do cliente: se “divertem”.


O comandante, parte de uma tripulação orientada pelas injunções do neoliberalismo, praticamente substituído por uma funcionária de menor escalão que veste bastante bem o papel de contenção de dejetos, é um norte-americano comunista frustrado. Os constrangimentos escalonam na mesma medida em que nos sentimos presos no mesmo barco – não duvido que muitos tenham sentido de fato certa náusea com as cenas que se seguem.


Na noite de gala, no jantar do capitão, marcado para um dia de tempestades no mar, aquilo que não aparece na pomposidade assegurada pelo brilho das louças e do piano que toca sem músico, retorna nos dejetos dos tripulantes. Enquanto todos vomitam, o capitão se diverte comendo um hambúrguer e satisfeito de que a boca de todos cheia de vômito não poderá proferir grandes merdas. Incólumes, apenas o capitão norte-americano comunista frustrado e o russo rico produtor de merda conseguem ainda preencher as cavidades com as vãs promessas do álcool antes da ressaca obrigar a recalcular a rota. O duelo começa: frases e mais frases. Acabam juntos, amigos, unidos pelo mesmo triângulo da tristeza. O capitão vocifera no alto falante as frustações e os dejetos da pomposidade do cruzeiro. Os passageiros deixam os dejetos por toda parte. Assistimos o navio se encher de merda (literalmente) – dinheiro e merda, todos na mesma triangulação.


É também em um triângulo – e não o das Bermudas – no qual o navio, atacado por Piratas, afunda. Eles têm as munições produzidas pelo casal de senhores ingleses – morrem felizes com suas próprias balas. Somos então deslocados para o terceiro lado da formação geométrica: uma ilha deserta.


A convivência entre os sobreviventes parece deslocar todos de lugar, não apenas os expectadores. Uma funcionária, chefe de limpeza do navio, passa a comandar a tribo. Suas habilidades de pesca e fogo são de mais valia do que a riqueza ou a tentativa de controle de dejetos empreendido pela sua chefe. Mais uma vez, chegamos a ficar alegres, como no jantar do comandante. Um matriarcado desponta como regime de poder: "às vezes só precisamos nos desfazer dos bens materiais e nos voltar para a natureza".


Doce engano, a natureza também está no triângulo, os lugares mudam, mas os papéis continuam o mesmo. Abigail, chefe da limpeza, atual rainha do matriarcado, e Yaya, modelo influencer, atravessada pelo envolvimento amoroso entre a primeira e seu namorado, saem para conversar. Mais uma vez, a ponta do triângulo parece revelar um horizonte – quem sabe elas não possam se entender e reorganizar o sistema de poder.


A revelação, no entanto, é outra. Não há entendimento. Yaya descobre que a ilha é o quintal de um resort. Pronta para voltar para seu habitat natural, promete a Abigail que trabalharão juntas, que ela pode ser sua ajudante quando "voltarem ao mundo". O filme nos deixa sem saber se Abigail mata ou não Yaya: tanto faz, não há saída possível, todas as opções seriam cruéis. Estamos no triângulo da tristeza. Entre merda e dinheiro não há distância segura. O triângulo está por toda parte e nos cerca de tristeza: será que um procedimento resolve?


Continuamos tentando....


Convencida de que essa postura só alimentava a melancolia, logo após o filme, fui procurar sobre a atriz que faz Yaya, Charlbi Dean. Linda e solar, a promessa do futuro parecia reivindicar espaço nos horizontes do triângulo. Charlbi Dean morreu não muito depois do término do filme, recém engajada em um noivado. Mais uma volta do triângulo.


Escrevo esse texto em Paris, em meio a greves que reivindicam a não retirada de direitos empreendida pela reforma previdenciária que está atualmente em votação no congresso francês. Ontem, passei o dia ao lado de um senhor comunista francês passeando pelo bairro de Belleville e escutando histórias da comuna de Paris (experiência de tomada de poder do proletariado que durou apenas dois meses e teve sua última barricada nesse bairro). Será que subimos o elevador do resort ou matamos para nos esquecer que estamos em uma ilha sem saída?


O triângulo da tristeza é uma boa sátira, seu tom escatológico muito me agrada, mas a náusea produzida talvez precise ser entremeada com outras formas geométricas possíveis.


Tags: #TriânguloDaTristeza #Cinema #Oscar #Reflexão #Arte #PontasDoTriângulo #Matriarcado #Merda #Dinheiro #TomEscatológico * Escritora e Pesquisadora. Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense. Doutora e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Doutora e Mestre (UERJ) em Saúde Coletiva; Graduada em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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