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O QUE VOCÊ VAI ENCONTRAR NO FILME "O DESTINO DE HAFFMANN"

Atualizado: 17 de dez. de 2023

Um filme de profundas implicações morais individuais e coletivas.




Por Alexandre Gossn*


AVISO: esta newsletter trará spoilers, portanto, tens duas opções: i) podes lê-la para assistir ao filme tendo melhor aproveitamento da análise sociocultural (mas perdendo parte da experiência cinematográfica que advém da surpresa) ou salve o texto, assista ao filme e volte para lê-lo e assim ruminar comigo a obra.


Imagem 01: Capa do Filme


Feito este aviso, sigamos!


Nesta película francesa do diretor Fred Cavayé temos um contexto histórico que já promete ambiguidades morais e a certeza de reviravoltas, como não poderia deixar de ser em uma obra de arte que se passa em 1941 na República de Vichy, ou seja, o norte da França que fora ocupado militarmente pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra (1939-1945).


Imagem 01: Mapa da França | Ocupação Nazista


A França sob ocupação nazista não é somente um simples capítulo histórico aos franceses, mas é também fonte de reflexões fecundas à psicanálise e às ciências sociais em geral. Culpa, remorso, vergonha, covardia, misoginia, antissemitismo, valentia, audácia, orgulho, rancor, ressentimento, medo, desesperança e esperança se mesclam em um cocktail de emoções que sacudiu os franceses de junho de 1940 em diante, quando assinaram a rendição às forças de Hitler.


Karl Jaspers (estudioso da psique humana e autor do best seller A QUESTÃO DA CULPA) leciona que as culpas morais ou legais podem ser atribuídas a um indivíduo, a culpa política tende a ser coletiva. Este ensinamento se mostra até um sentimento intuitivo, pois em geral como indivíduos temos a tendência em nos sentirmos responsáveis quando calamos ante injustiças cometidas pelo Estado contra pessoas indefesas. A pergunta segundo a ideia de Jaspers não é se posso agir, mas, sim, como posso agir, porque sempre é possível alguma ação (daí Jaspers culpabilizar a sociedade alemã como um todo pelo nazismo e criticar duramente o negacionismo histórico que passou a ser praticado por alemães no pós guerra sob argumentos de que nada sabiam ou nada poderiam ter feito).


A obra de Jaspers é altamente transponível à situação da República de Vichy. Primeiro: teriam os franceses realmente feito tudo que estava à altura para impedir a ocupação nazi? A rendição era uma medida razoável para salvar inocentes ou um ato de covardia?


As questões vão se complicar ao longo do filme, porque para algumas pessoas a ocupação nazista não é apenas algo a ser tolerada: ao contrário, ela rende até bons dividendos inesperados. No filme, Joseph Haffmann é um talentoso joalheiro, pai querido e devoto marido. Tendo ciência do terror que está se passando na Polônia e mesmo dentro da Alemanha, o protagonista sabe que a ocupação alemã perseguirá os judeus como fazia em outras partes da Europa ainda que de início prometa não o fazer. Mais que isso, Joseph sabe que nestas circunstâncias, muitos dos seus vizinhos serão seus inimigos, ou seja, franceses que o entregarão de bom grado, seja almejando recompensas, seja por antissemitismo. Sem saída, o joalheiro propõe ao seu funcionário francês (Francois Mercier) um pacto: ele simula a venda da joalheria e sua casa anexa ao preposto, em troca, quando acabasse a guerra este devolveria os bens do patrão e teria uma joalheria montada só para ele.


Estão prontos os alicerces para que a marcha moral de Mercier seja testada, assim como a moral coletiva (dos franceses) seja medida conforme a ocupação nazista se intensifica. O paralelo aqui é riquíssimo: enquanto assistimos o arco de Mercier emular a jornada do vilão como ocorre com Walter White / Heisenberg em Breaking Bad, nos deparamos com o inverso no que se dá com a sua esposa Blanche que parece percorrer a mítica jornada da heroína. O primeiro começa como um funcionário humilde que fica tocado com a confiança do patrão e a desgraça que se abate sobre ele e termina como alguém capaz de escravizar um ser humano não só para lucrar, mas para tentar sentir orgulho do que não sabe produzir, enquanto a segunda que inicia como alguém deslumbrada com posses que jamais teve termina como alguém que entende o custo do que terá que perder em termos humanos para ganhar os bens materiais que o marido persegue.


Esta contraposição de arcos é feita de forma magistral pelo cineasta, roteiro e elenco. Mas não termina aí. Mercier assume a loja do patrão, mas este não consegue fugir e termina refugiado no porão da sua própria loja / casa e escravizado, tendo que produzir as joias que o antigo preposto venderá no térreo do prédio como se fossem crias suas. Mercier descerá mais. Sendo ressentido com as limitações físicas (claudica para andar) e sonhando em ter filhos (mas sendo estéril), obriga a esposa a dormir com Haffmann para que concebam uma criança que seria apresentada ao mundo como filha de Mercier.


Para além dos estupros cometidos contra a esposa (não raramente tolerados no Brasil até o começo dos anos 90 como exercício regular de direito do marido), François em certa medida pratica também um estupro por procuração, ao obrigar a esposa a dormir com outro homem para que gere um filho que este pretende tomar como seu. Ao mesmo tempo em que rouba a casa, a loja e o produto do trabalho do antigo chefe, Mercier agora pretende roubar até o sêmen deste, gerando uma criança meio judia em meios aos escombros do Holocausto e a hipocrisia da França Ocupada.


O filme também subverte a visão tipicamente machista que vigorou na França do século XX, onde as mulheres francesas eram vistas como as “prostitutas que dormiam com nazis” e assim traíam a pátria francesa. Ora, e não seria prostituição o que Mercier, o “cidadão francês” exemplar, estava fazendo? Usurpando a casa e o trabalho alheio, secando o esperma de um escravo e ainda fabricando joias com itens saqueados de famílias judias mortas… vendendo tudo isso aos oficiais nazistas?


Imagem 03: Francesas passando pelos julgamentos conhecidos como purgas morais após a expulsão dos nazistas.


A covardia, a cobiça e deslealdade com a pátria, por acaso, seriam vícios inexistentes aos homens? O filme recorda que não e, neste ponto, faz justiça ainda que tardia às purgas morais praticadas contra centenas de mulheres em Paris. Blanche não é apenas esposa de Mercier, ela é o coletivo de mulheres francesas que foram perseguidas injustamente antes, durante e depois da ocupação.


A obra não retrata, não menciona, mas é interessantíssimo imaginar o contexto subjacente ao pano de fundo histórico em que está inserida: França subjugada, De Gaulle em Londres articulando com Churchill um contra-ataque e estimulando os franceses a resistir, Picasso vivendo em Paris (e sendo vigiado de perto pela polícia política) enquanto o Marechal Pétain se dedica a implantar um regime colaboracionista com o Estado mais cruel da História. Neste tabuleiro intrincado de bispos, torres, rainha e cavalos, Haffmann era só um peão e Blanche foi outro peão a lhe estender a mão.


O desfecho da obra é esplêndido e mostra como a única punição que consegue ensinar a quem se entrega à desumanização é justamente estar na pele do outro.



* Pesquisador e Doutorando em Ciências Sociais junto ao Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra, com ênfase em Filosofia Política e Autoritarismos Contemporâneos. Escritor, Mestre em Direito Ambiental e Advogado.

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