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O NÃO-DITO E A PROPAGANDA PUNITIVISTA DO ESTADO NO SERIADO “A LIÇÃO”



Por Suzana Nascimento Veiga*


“Mal parece existir, exceto para o homem que sofre com ela – em sua alma por meses e anos, em seu corpo durante a hora desesperada e violenta quando ele é cortado em dois sem que sua vida seja suprimida. Vamos chamá-la pelo nome que, pela falta de qualquer outra dignidade, vai ao menos dar a dignidade da verdade, e vamos reconhecê-la pelo que é, em essência: uma vingança” (Albert Camus, Reflexões sobre a guilhotina).

O que realmente sabemos sobre a intenção por trás das coisas? Sobre o que está nas entrelinhas? No não-dito? Em uma disciplina de análise do discurso que cursei durante o mestrado em história, fomos alertados que o “não-dito” oculta a ideologia. O interdiscurso possui uma margem de significados agregados que formam, juntamente com o “dito”, o discurso. Nesse fim de semana, terminei de assistir o seriado sul coreano “A lição”, distribuído internacionalmente pelo serviço de streaming Netflix; e o não-dito na série me chamou bastante atenção pelo que releva de uma discussão que tem vindo novamente à tona naquele país asiático: a da aplicação da pena capital.


O seriado em questão conta a história de Moon Dong Eun, uma jovem vítima de bullying escolar que organiza um intrincado plano de vingança contra o grupo de agressores que a assediavam na escola.


Figura 1: A atriz Song Hye-kyo, intérprete de Dong Eun. Fonte: Google


O arco da história de Dong Eun é bastante interessante e bem amarrado. Nele, somos confrontados não apenas com o problema alarmante e sistêmico do bullying escolar na Coréia do Sul, mas em como toda essa estrutura reflete questões de classe e hierarquização social. A trama também serve para mostrar como, mesmo com os avanços de normativas de combate ao bullying tendo sido construídas nos últimos anos no país, a violência escolar avançou, em vez de recuar.


Pesquisas do Ministério da Educação mostram que os índices de violência escolar cresceram 0,6% em 2022 em relação ao ano de 2021 (devido principalmente a que o ano escolar de 2021 foi atravessado pela quarentena da Covid-19). Em 2021 houve um crescimento de 0,1% relativamente ao ano de 2019, antes da Covid. Os números e aumentos de caso e dos tipos de violência perpetradas contra crianças e adolescentes mostram como o punitivismo não constituiu uma forma de suprimir os sintomas e muito menos de atacar os reais problemas que se configuram por trás da violência escolar.


Entretanto, por mais que esse seja o núcleo do seriado e que muito se tenha a debater sobre a questão, o que mais me chamou atenção na trama foi o desenvolvimento da história paralela do personagem aliado e interesse romântico da protagonista, o médico Joo Yeo Jeong.


Figura 2: O ator Lee Do-hyun, intérprete do médico Joo, em cena com a atriz Song Hye-kyo. Fonte: Google


O que parecia a princípio era que este personagem cumpriria o papel, geralmente reservado a mulheres em narrativas de vinganças, de ser o apoio, cúmplice e elemento humanizador da protagonista em busca da justiça que não conseguiu por vias de instituições corruptas como a polícia e o sistema de justiça. No entanto, em um plot twist nada agradável, o Dr. Joo teve um arco de vingança todinho dele, que se mostrou desconectado da história central e pareceu panfletário no pior sentido possível.


O arco narrativo do Dr. Joo aparece como um plot de mobilização de uma pauta conservadora e punitivista que ressurge na Coréia do Sul como uma mostra dos novos tempos e do novo governo que assumiu este ano a Casa Azul, representado pelo atual presidente Yoon Suk Yeol: o debate sobre a aplicação da pena de morte.


Na trama, O Dr. Joo é filho de pais médicos de uma família rica a privilegiada, dona de um dos maiores hospitais da capital: Seul. Em meio a uma vida protegida e confortável, a família é marcada pela tragédia quando, ao tentar operar um prisioneiro para lhe salvar a vida, o pai da família é assassinado com o bisturi por este mesmo homem. A tragédia marca a vida do jovem médico que perde o pai em circunstâncias tão violentas; e a isso é acrescentada a abordagem da narrativa de mostrar este prisioneiro como um homem monstruoso, frio e calculista, que mata por prazer e atormenta a vida do jovem Dr. Joo, mesmo após a prisão.


Figura 3: O ator Lee Moo Saeng em cena como o assassino Kang Yeong Fonte: Google


A forma como a trama em torno dessa história é conduzida, além de desconectada do roteiro brilhantemente conduzido da história de Dong Eun, demonstra a agenda por trás da trama, o interdiscurso, o não-dito. Em um diálogo com o referido prisioneiro, Dr. Joo diz que vai transformar a vida dele em um inferno e vai matá-lo, já que a justiça do país não o faz. O assassino então lhe devolve numa fala que diz: “Você não pode fazer isto, você fez um juramento” ao que o Dr. Joo responde: “meu juramento não é para animais ou monstros e sim para seres humanos.” É interessante como a desumanização do assassino é operada pela trama para construir a ideia de que ele é um “monstro” e que, portanto, merece morrer.


A história de Dong Eun é uma história de sucessivos abusos, abandono e injustiça: da mãe que não cumpre seu papel, da violência escolar que ela e outras meninas pobres sofre do grupo de jovens ricos e privilegiados de sua escola, das autoridades escolares, da falha dos aparelhos do Estado como a polícia e a justiça que são corruptos e se colocam do lado dos ricos e abusadores. A vingança de Dong Eun tem um forte componente de classe e escancara os abismos sociais do país; enquanto isso, a questão do Dr. Joo parece muito mais os problemas de um pobre menino rico. Seu pai é assassinado, mas o assassino é preso e sentenciado à morte. A justiça não falha com o Dr. Joo, ele não é abandonado e não precisa trabalhar em subemprego para sobreviver, como Dong Eun. Sua mãe, ao contrário da mãe dela, lhe fornece na trama apoio financeiro, psicológico e emocional. O que falta a esse menino rico é provavelmente terapia.


A desconexão de toda esta história com o restante da trama acaba fazendo dela um corpo estranho. Isso é bastante perceptível, mesmo que se assistindo sem saber a proposta pela qual ela foi encaixada ali.


Retomando a conversa entre o médico e o “monstro”, a estrutura da conversa me acendeu sirenes na cabeça. Aquele diálogo, assim que o assisti, lembrou-me imediatamente uma notícia que vi em julho de 2021 no jornal coreano The Herald que apontava para o ressurgimento do debate acerca da aplicação da pena capital. Para quem não está familiarizado com essa questão na Coréia, o ano de 1997 não foi apenas o ano de nascimento do Jungkook do BTS, mas também o último ano de uma execução de prisioneiro. Há 25 anos, nenhuma pessoa, mesmo recebendo a pena de morte, é executada naquele país.


Entretanto, devido à onda conservadora que tem tomado não só o país, mas várias democracias de leste a oeste do globo, a Coréia tem visto a ascensão dos debates e das pressões em torno da questão. Uma pesquisa feita pela Comissão Nacional de Direitos Humanos na Coréia em 2018 mostrou que havia mais coreanos a favor do que contra a pena de morte. A pesquisa mostrou que 8 a cada 10 coreanos gostaria que a pena de morte permanecesse como uma forma de punição no país. Esses dados provavelmente aumentaram após o caso ocorrido em 2021 de um padrasto que estuprou e matou sua enteada de apenas 20 meses e causou comoção nacional.


Neste sentido, a mídia detém um alto poder de convencimento e elaboração de pautas nas “mentes e corações” da população. Os coreanos são, no geral, bastante movidos pelo que consomem de informação e arte e prova disso é como filmes, seriados e livros geraram alvoroços e movimentação social a ponto de resultar em criação de leis. O livro “The crucible” da escritora e ativista feminista Gong Ji Young e o filme adaptado da obra, que conta a história de uma série de abusos cometidos contra crianças surdas em uma escola em Gwangju, cujos culpados permaneceram impunes, gerou uma onda de protestos tão intensa que foi aprovada no país uma lei chamada “Dogani Bill” acerca de maior proteção a crianças abusadas e punições mais severas aos culpados.


Observando este panorama, podemos compreender como tramas como esta do Dr. Joo não estão ali por acaso em um momento em que os ânimos dos coreanos estão inflamados pelo sentimento de “justiça” contra homens “monstruosos” como estes da ficção ou os reais que abusam e matam crianças de menos de dois anos e com toda razão. Mas nos interessa de que forma essa raiva e indignação são canalizadas pelo Estado e suas instâncias de poder para aprovar medidas que não promovem transformações verdadeiras no status quo.


Tendo isto em vista, a primeira coisa que fui pesquisar assim que conclui o seriado foi se havia investimento estatal no seriado para além do já esperado. O incentivo financeiro direto do governo em produções de audiovisual que tragam esses temas para debates para o grande público de forma a induzi-los é uma realidade recorrente na Coréia do Sul, especialmente com a justificativa de exportação e distribuição da cultura local. E gostaria de dizer que, sem nenhuma surpresa, entre os seriados que foram parte beneficiada pelos 4,8 trilhões de won investidos pelo Ministério da Cultura, Esportes e Turismo em produções e distribuição via Streaming estava “A Lição”.


E a qual problema devemos nos preocupar e como isto se relaciona conosco enquanto brasileiros? Existem diversas questões para as quais devemos atentar e que nos atravessam a partir de uma perspectiva internacionalista. A primeira delas se refere ao problema central do punitivismo e do que ele carrega em si. A pena capital não traz por si só transformações significativas no tecido social que modifique a conduta dos criminosos ou o tipo de crime cometido. Por ser uma legislação punitivista, ela está associada a tentar conter o sintoma e não a atacar as causas do problema.


A Coréia do Sul é um país que, como o Brasil, atravessou uma ditadura civil militar e possui um patriarcado extremamente paternalista que promove a violência, especialmente a masculina através dos papéis sociais reforçados por sua formatação militarista. A violência masculina é uma constante e as principais vítimas de crimes punidos com a pena de morte são mulheres e os perpetradores homens. Entretanto, não existe nenhuma preocupação com trabalho de base para combate de violência ou instâncias educativas para isto; a solução apresentada é sempre pela via punitivista.


Esse panorama te lembra algum debate recente no Brasil?


Outro problema que se une a este é o da pobreza e da massa de população marginalizada, expulsa dos centros e das grandes cidades pela gentrificação, a ausência de serviços consistentes e de assistência fornecida pelo Estado que tem uma estrutura hiperliberal além da feminização da pobreza. Todo esse panorama opera a desumanização constante da população de pobres e miseráveis no país e é causa sistêmica dos sintomas de violência naquela sociedade, algo muito próximo da nossa realidade.


Gong Ji Young, que acima nos referimos como autora do livro “The crucible”, é também autora do livro traduzido para o português com o título “Nossas horas felizes”. Neste livro, a autora debate sobre a questão dos prisioneiros no corredor da morte relacionando seus crimes com uma existência de violências desumanizantes desde a infância. A autora fez pesquisa in loco e desenvolve trabalhos até hoje com prisioneiros no corredor da morte e possui profundas reflexões sobre a morte como solução de problemas sociais profundos e a violência como consequência da desumanização e embrutecimento provocados pelo patriarcado capitalista.


Nem ela e muito menos este artigo está defendendo o crime ou justificando o comportamento de criminosos e sim buscando entender como a violência é resultado de sociedades desiguais, hierarquizadas e que treinam homens para a violência e mulheres e crianças para a obediência e passividade e como esses sintomas não vão se resolver a partir de medidas punitivistas. Ter isso em mente é fundamental ao se pensar em como políticas públicas serão formuladas e como enxergamos a aplicação da justiça.


Como último ponto, especialistas chamam atenção para a história da Coréia do Sul e como a pena capital foi utilizada como ferramenta pelo governo colonial japonês e pelos ditadores militares para perseguir e matar dissidentes e defensores da liberdade no país. O que chama atenção para as falhas de um sistema de justiça que tanto na Coréia quanto no Brasil foram criados para defender os interesses dos HOMENS poderosos e para manutenção da ordem social do patriarcado capitalista.


Em um momento em que a busca por punitivismo também cresce no Brasil, acredito que, olhando para a história e as questões sócio-políticas envolvidas na criminalidade e nas punições aplicadas e a forma como elas acontecem, cabe a nós enquanto indivíduos e enquanto sociedade civil organizada entender cada uma das linhas e entrelinhas dos mecanismos usados para nos convencer a tomar essa ou aquela decisão e como essas decisões nos afetarão num futuro em nossa condição enquanto mulheres, crianças e homens, seja na Coréia do Sul ou no Brasil.


A mídia e suas produções, como alertou Althusser, é uma ferramenta, um dos chamados aparelhos “ideológicos do Estado” que por sua vez é representante dos poderes estabelecidos. Então, mais do que nunca, estejamos atentos aos não-ditos, pois na maioria das vezes eles falam mais alto que as linhas escritas e postas diante dos nossos olhos, seja na Coréia do Sul ou no Brasil.


Referências:


Louis Althusser. Aparelhos ideológicos de Estado. 1970

GONG Ji Young – Nossas horas felizes. 2017

GONG Ji Young – The crucible – 2009

7 new Korean dramas in February 2023 you shouldn’t miss fonte: https://www.lifestyleasia.com/sg/entertainment/best-new-korean-dramas-in-2023/

Gong Ji-Young: 'Being near death motivates life' fonte: https://www.theguardian.com/books/2014/jun/22/gong-ji-young-death-motivates-life



* Pesquisadora, escritora e historiadora. Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco.

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