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Suzana Nascimento Veiga

O FENÔMENO K-POP: UMA REFLEXÃO SOBRE O PODER DE MOBILIZAÇÃO DOS FANDOMS

Atualizado: 23 de fev. de 2023



Por Suzana Nascimento Veiga*


Em 22 de dezembro de 2019, uma matéria veiculada pelo site Catraca Livre exibia em letras garrafais o seguinte título: “Governo Chileno alega que K-pop incentivou protestos no país”. A declaração viera do Ministério do Interior, na época comandado por Gonzalo Blumel, que reuniu dados digitais sobre as mobilizações para as grandes ondas de protestos e pedidos de renúncia do então presidente Piñera e concluiu que os fãs de K-pop eram alguns dos principais fomentadores por trás das manifestações de rebeldia e motins que atravessavam o país.


Figura 1: imagem feita nas ruas do Chile. Fonte: Publimetro


A notícia e o que ela revela deveriam ser motivo de atenção para todos os envolvidos em mobilizações e organizações sociais, bem como a quem se coloca enquanto cientista social e que observa os chamados “movimentos da sociedade”, como designa Aníbal Quijano. Entretanto, a notícia vira símbolo de curiosidade e risadas – ou simplesmente passa de largo pelos grupos acima mencionados.


O K-pop, conectado à chamada Hallyu ou "onda coreana", vem sendo geralmente estudado como um braço da indústria cultural e fator de alienação das massas. Acreditamos que essa abordagem, além de simplista, demonstra mais uma vez como cientistas sociais e demais atores políticos estão presos a formas cristalizadas de pensar e elaborar a ação política, especialmente no que se refere àquelas protagonizadas por jovens e especialmente jovens mulheres. E, assim, o poder de mobilização de uma força sociopolítica e cultural como o K-pop tem sido olhado de forma enviesada e problemática por um ponto de vista elitista, xenófobo e misógino.


Em seu artigo “The apotheosis of Frida and Ché: Secular Saints and fetischized commodities”, a antropóloga Mexicana Carleen Sanchez critica a posição de especialistas ligados à Escola de Frankfurt, especificamente Theodor Adorno e Max Horkheimer, que acreditavam que toda cultura de massa seria destituída de espontaneidade e fruto apenas da massificação do entretenimento capitalista com o objetivo de alienação das massas. Sanchez, ao contrário, observa os fenômenos de massa que envolvem cultura não apenas como reflexos da apropriação capitalista com o objetivo de alienar, mas também pelo que eles possuem de potencial subversivo.


Ela acredita que restringir os símbolos comodificados a pura apropriação capitalista, fetichista e destituída de potencial revolucionário é reduzir o papel ativo dos sujeitos políticos e dos símbolos revolucionários de sua capacidade de subversão, mesmo dentro das dinâmicas capitalistas. Neste sentido, a relação ídolos e fãs, músicas e outros conteúdos produzidos por grupos de k-pop – e toda a tensão resultante das trocas entre estes grupos e suas fãs – tendem a carregar essa dicotomia entre atender as demandas do mercado, mas também construir espaços próprios de subversão e potencial revolucionário.


Os anos 1990 foram marcados pelos fã-clubes, grupos formados por fãs de bandas diversas, especialmente das conhecidas boy e girl bands, como Spice Girls, Back Street Boys etc. Atualmente, os fandons (diminutivo da expressão em inglês “fan kingdom”, que significa “reino dos fãs”) ampliaram o conceito de ser fã. O fandom trata mais da prática ou da ação de ser fã do que de idolatrar um ídolo. Essa “cultura de fã” ganhou muita força com o fenômeno do K-pop tanto na Ásia, onde ele se origina, quanto no ocidente. Grupos como BTS, 2NE1, NCT, Monsta X, Blackpink, EXO, Red Velvet, Ateez, Stray Kids, entre outros, ganharam os holofotes na última década por conta de sua grande massa de fãs que ultrapassa milhões.


Figura 2: fãs do BTS ou BTS ARMY. Fonte: Google


Esses fandoms se engajam em diversas esferas, especialmente com o advento das redes sociais e ferramentas online de interação com os grupos.


O caso dos protestos no Chile são apenas a ponta do iceberg de envolvimento dos fandons de K-pop com mobilização política alinhada com as esquerdas, de caráter feminista e antirracista, isso tudo incentivado especialmente por grupos que falam abertamente sobre problemas sociais e possuem músicas de teor crítico a diversas questões sociais e da própria indústria do K-pop. Yena Lee – doutoranda em Media, Technology and Society na Northwestern School of Communication –, em seu artigo "Feminist Fans and Their Connective Action on Twitter K-Pop Fandom”, fala de como especialmente fãs de k-pop, que são feministas declaradas, negociam, expressam e moldam sua práxis feminista dentro do fandom e nos ativismos resultantes. Ela inclusive afirma que: “Especialmente as ações de cunho feminista dentro dos Fandons são de organização política e consciente, diferente de outras com cunhos mais diversos”.


Grupos como BTS e seu fandom denominado “Army” são conhecidos por suas letras de conteúdo crítico desde sua estreia em 2013. O grupo formado por 7 membros já fez discursos e campanhas com a ONU e se posiciona sobre questões locais da Coreia do Sul, como o naufrágio da barca Sewol em 2014 que resultou na morte de mais de 400 pessoas, sendo a maioria estudantes de uma escola secundária, onde o governo foi acusado de demora na prestação de socorro, sendo as mortes resultado da falta de ação rápida das autoridades. O grupo BTS apoiou as famílias dos mortos que protestaram contra o governo e posteriormente lançaram uma música em referência ao ocorrido. Mas o grupo também se mobiliza em ações de cunho mais internacional, como a doação feita ao movimento Black Lives Matter por ocasião dos protestos pelo assassinato de George Floyd pela polícia.


Nessa ocasião, o ativismo Army chamou atenção por várias ações, como #armymatchamillion, mobilização para igualar a doação do BTS a organização do Black Lives Matter e assim ajudar na soltura dos militantes presos durante as manifestações. Mas outra ação coordenada via Twitter chamou atenção de forma expressiva e teve como intenção hackear o aplicativo da polícia de Dallas que pediu para serem enviados vídeos dos manifestantes cometendo o que a instituição chamou de “atos de vandalismo” ou “desordem”. Os fãs organizados do BTS e de outros grupos de K-pop “flodaram” o aplicativo com vídeos de Fancam (filmagens amadoras de fãs do membro preferido de seu grupo) de K-pop e o departamento de polícia interrompeu o uso do aplicativo devido a “dificuldades técnicas”.


Figura 3: publicação da polícia de Dallas via Twitter sobre o mal funcionamento do aplicativo devido à ação dos fãs de K-pop


Assim, se torna necessário entender e dimensionar esse fenômeno e as possibilidades para as novas formas de mobilização social e organização política que eles promovem. Mas devemos alertar que também se faz necessário um olhar aprofundado sobre o estigma colocado sobre fandoms e como isso está intimamente ligado com a misoginia introjetada em nossa sociedade que percebe os fandoms ou fã-clubes como um espaço de “garotinhas histéricas”.


A ideia de “coisa de mulher” ou “coisa de mulherzinha” tem uma genealogia histórica milenar. E, através da recuperação dessa história, podemos entender como fenômenos recentes se inserem dentro de uma corrente de pensamento que é um dos pilares do estabelecimento do patriarcado e da delimitação de insignificância e “futilidade” atribuído a tudo que seria do “universo feminino”. Outra manifestação desse discurso se dá nos espaços de solidariedade e de troca entre mulheres. Eles foram desde muito tempo vistos como perigosos, fúteis e desimportantes.


Então reuniões, conversas e espaços onde as mulheres são maioria foram estigmatizados sob o peso de lugar de fofoca, da frivolidade, do clube da Luluzinha, de lugar de gritaria e histeria. Os assuntos e pautas chamados de bobos e estúpidos. Fangirling, especialmente depois do fenômeno dos Beatles e das boybands ocidentais, tornou-se um lugar pejorativo de reduzir as mulheres a uma massa de hormônios que gritava e chorava por homens que nem conheciam a nível pessoal. Não entraremos aqui no mérito de comparação com o comportamento masculino no futebol ou com relação a games e animes, mas é neste ponto de inflexão que vemos a desautorização das mulheres e a misoginia introjetada em estigmatizar seus espaços.


Assim, através de discursos que constroem leis, ciência, norma, instituições, o universo feminino, o mundo e as coisas das mulheres ganham o espaço da desimportância, do não-lugar. Nossa memória pode ser apagada, nossa história pode ser enterrada e obliterada, nossas vozes suprimidas, nossa literatura, gostos, motivos de risos e curiosidade. Por isso, torna-se “normal” rir do K-pop e das fãs desses grupos e ignorar qualquer poder de mobilização política e organização social atribuído a mulheres que gritam e choram em shows de homens que cantam e dançam com roupas brilhantes.


Um dos passos para a melhor apreensão do fenômeno do K-pop e dos Fandoms é desestigmatizá-los para que possamos enxergar não apenas como os fandoms se envolvem nas causas e respondem às demandas de seus artistas por críticas sociais e engajamento em questões políticas, mas também como essas mulheres e meninas se sentem, dentro desses espaços, à vontade também para exigir posturas coerentes de seus ídolos e demarcar seu lugar de “estamos com vocês, mas não para tudo”.


Essa postura ficou bem clara quando em 2016 uma hashtag foi levantada por fãs do BTS cobrando do grupo uma postura e um feedback sobre músicas com conteúdo misógino escritas e cantadas por eles. A hashtag #WeWantBTSFeedback teve descrição minuciosa dos problemas encontrados nas músicas e tweets dos membros do grupo e ganhou ampla repercussão na mídia coreana e internacional na época. Por sua vez, a resposta do grupo consistiu não apenas de desculpar, mas também de buscar formação sobre estudos de gênero e retirar do repertório as músicas apontadas como misóginas e ofensivas pelas fãs. Posteriormente, outros fandoms de grupos de K-pop utilizaram a mesma hashtag para cobrar postura semelhante de seus artistas favoritos.


Figura 4: Kim Namjoon, líder do grupo BTS, fala sobre as acusações de misoginia e sua busca por formação de gênero.


Isso nos demonstra não apenas a capacidade de articulação do Fandom, mas a subversão da suposta relação de idolatria do fã relativamente ao ídolo. Nesses casos, o argumento de Sanchez sobre as dinâmicas e os tensionamentos das relações vão moldando a realidade social e lhe dando camadas para muito além de uma taxação de “indústria cultural = alienação”.


Como último ponto a ser destacado nesta reflexão, podemos pensar no conceito revolucionário de “internacionalismo” tão caro a anarquistas, comunistas, feministas e qualquer movimento político que vise o fim das opressões sistêmicas. Os debates em torno do internacionalismo têm sido complexificados pela intervenção colonialista do ocidente sempre tomando a Europa e suas experiências como modelos universais e com isso existem diversos entraves que se colocam contra a máxima “trabalhadores do mundo, uni-vos” ou “feministas do mundo, uni-vos” etc. Mais uma vez, observando os fandoms podemos ver uma experiência concreta e singular de internacionalismo que eles costuram em suas relações.


A noção de pertencimento construída pelo sentido de partilha de uma identidade de grupo é digna de observação acurada. Mulheres e também homens de diferentes idades, nacionalidades, culturas e classes sociais se unem para apoiar ações sociais, trocar mensagens, engajar em campanhas etc. As mobilizações são inúmeras e o resultado o mesmo, criando uma das comunidades mais internacionalistas que podemos observar na atualidade.


Enumerar estas questões se faz necessário para tomarmos dimensão de uma força sócio-política subestimada por um pensamento cristalizado e misógino do que significa “organização política” e “movimento social”. Enquanto sociedade organizada, se intelectuais e academia não se derem conta de todo esse potencial inexplorado e do quanto podemos aprender com as experiências dos Fan Kingdoms, continuaremos “girando em torno do próprio rabo”, repassando teorias caducas que estão desconectadas da realidade material e do movimento da sociedade.


Por fim, podemos, numa observação mais aprofundada e em estudos distintos, enumerar as problemáticas internas a esse movimento, como em qualquer outro movimento social. Porém, como objetivo central deste pequeno artigo, queríamos apresentar uma síntese sobre a formatação desse fenômeno que são os fandoms de K-pop e as possibilidades já experimentadas e possíveis graças a sua atuação contundente como força mobilizadora dentro da nossa sociedade atualmente.


REFERÊNCIAS:


Governo Chileno alega que kpop incentivou protestos no país. Disponível em: < https://catracalivre.com.br/mais/governo-chileno-alega-que-k-pop-incentivou-protestos-no-pais/ >. Acesso em: 21/02/2023.

LEE, Yena. Feminist Fans and Their Connective Action on Twitter K-Pop Fandom. Berkeley Undergraduate Journal. University of California, 2019.

SANCHEZ, Carleen D. The Apotheosis of Frida and Ché: Secular Saints and Fetishized Commodities Journal of Religion and Popular Culture, Volume 24, Number 2, Summmer, 2012, pp. 296-309 (Article).

SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. São Paulo: Bazar do Tempo, 2021.



* Pesquisadora, escritora e historiadora. Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco.

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