top of page
Robson Di Brito

NÃO PODEM DANÇAR AOS ORIXÁS



Por Robson Di Brito*


O filósofo prussiano do século XIX, Friederich Nietzsche, em sua obra "Assim Falava Zaratustra", afirmou que só acreditaria num deus que soubesse dançar. É claro que sendo um autor do universo eurocêntrico, Nietzsche angaria credibilidade pela afirmação. E estava provavelmente inspirado nos rituais de Baco, as danças rituais em homenagem ao deus Dionísio são as mais antigas conhecidas na Grécia. Essas práticas de cultos, como o cortejo dionisíaco, foram representadas em vasos (fonte principal de documentação) que serviram de base para inúmeros filósofos, artistas e pensadores.


Mas em diversas culturas indígenas ou Xamãs, os Acachillas ou Xapiris dançam nas florestas em cultos aos antepassados, ou aos animais. No antigo Egito, quando Akhenaton e sua esposa Nefertiti mudaram a capital do Egito para Amarna, o Faraó dançou grandes passos ritmados ao redor do templo para assegurar a marcha do deus sol. Nas religiões orientais antigas, também os hinduístas reconhecem na natureza e até no movimento dos astros a dança de Shiva. Os sufis islâmicos são místicos dançarinos e afirmam renovar o universo com suas danças. Nas festas judaicas da Simchá Torá, a festa da alegria da lei, os rabinos dançam com o texto sagrado nas mãos.


E mais, mas... No livro bíblico também encontramos passagens que narram o ato de dançar como um exercício de louvor. O livro Êxodo conta que quando os hebreus atravessaram o mar, Míriam, irmã de Moisés, pegou um tamborim e, com todo o povo, cantou e dançou (Êxodo 15:20). No transporte da arca da aliança para Jerusalém, o rei Davi, seminu (II Samuel 6:14 e 20), dançou diante da arca. E vários salmos bíblicos propõem que o povo cante e dance a alegria da intimidade com Deus como uma esposa dança com o esposo (Salmos 149:3; 150:4 e outros).


Será na tenebrosa Idade Média, em função dos anátemas lançados contra a dança pela Igreja, que ocorrerá uma ruptura da associação da dança como o culto religioso. O cristianismo, na sua condenação do mundo romano, englobou as artes que refletiam as comemorações humanas como abominação. Os padres da Igreja, como Santo Agostinho, condenaram “esta loucura lasciva chamada dança, negócio do diabo”. Além desta maldição circunstancial, a contaminação do pensamento bíblico pelo dualismo grego levou São Paulo a opor o espírito aos sentidos e a desprezar o corpo: o bem no homem só está na alma, e todo mal vem da carne. Algo que prosperou por todos os lugares dominados e colonizados pelo cristianismo, e assegurou que fossem seguidos – praticamente até a entrada do século XX.


Agora quando o grupo baiano Opanijé canta "(...) Me desrespeita e depois vem me falar de respeito / O que te move é o sagrado que mora em você / Talvez por isso que os canalhas ouvem sem se mexer / Arrepio é pra quem sente não pra quem quer entender / E a força valiosa da ancestralidade / E hoje sou eu quem defino o que está em meu alcance /Não acredito num Deus que Não dance (...)" eles não estão falando de Friederich Nietzsche, e seu famigerado "Assim Falava Zaratustra", mas das danças dos Orixás; divindades das religiões de matrizes africanas. Essas que chegaram ao território brasileiro como a única herança cultural, filosófica e tecnológica de homens e mulheres sequestrados em África e mantidos como escravos.


Assim como as inúmeras danças de louvores aos deuses que povoam o imaginário humano no planeta terra, a dança dos Orixás também compõe o imaginário do ser africano em sua relação com o mundo natural, a divindade e do ser humano com o ser humano. Existe, de fato, um processo de marginalização social e legal, historicamente construído pós-abolição em 1888 que visa, num quadro de modernidade, livrar-se da marca africana. A memória histórica dos cultos de matrizes africanas, veiculada pelas gerações anteriores, relata a necessidade de inscrição destes espaços em Secretarias de Segurança Pública, e a autorização de culto pela polícia da jurisdição. Há relatos orais e documentais que dão conta da repressão policial vivida. Tal ação juridicamente construída produziu um misto de medo e descrença reverberando no senso comum como, por exemplo: "Chuta que é macumba!"


São inúmeros os relatos que dão conta de invasão em espaços religiosos que resultam em violência física e psicológica aos adeptos, com a desculpa (“fato isolado”) da defesa à ordem pública, da perturbação sonora e acúmulo de pessoas como ocorre em festividades. Contudo, o que se entende é uma tentativa de parar os corpos de dançarem como prescrevem seus mitos de ritos. Porém, o poder da influência africana, além de se fazer presente nos corpos brasileiros, também está no pensamento nacional, na tecnologia e nas inúmeras artes.


Em primeira instância a dança dos Orixás, que constitui em seus movimentos o contar mítico sobre a divindade. Junto ao som compõem uma construção de sentidos que influenciarão outras manifestações artísticas, principalmente as danças de rua, danças populares e a capoeira. Estes estilos, por serem criados de forma espontânea a partir de momentos festivos, com a presença e influências de gerações diversas e de comunidades que convivem em sua construção de linguagens corporais ancestrais e contemporâneas, trazem em si a heterogeneidade de processos e a complexidade de interpretações. Em geral, a maioria das danças valoriza a movimentação ampla dos quadris e tronco, por meio de manifestações em rodas que são características majoritariamente de populações africanas.


De maneira ousada podemos ir além. Quando as “irmãs” e “irmãos” das religiões neopentecostais dançam em seus cultos ou em suas sessões de descarregos (nome de uma ritualística afro-brasileira) e gesticulam como Pombagiras em uma festa de Exu, nada mais é do que a influência daquilo que repudiam reverberando em seus corpos. Sendo de maneira tão “incorpora” a vivência brasileira que não se pode desvincular tais movimentos dos cultos afro, mesmo estando em um recinto que poderá repudiar as práticas dos cultos de matrizes africanas.


É necessário recordarmos que, em 2022, a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro, no desespero de angariar votos do eleitorado evangélico, demonstrou escancaradamente em seu perfil no Instagram cenas de intolerância religiosa. Dentre tantas, o então candidato a presidência e atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, estava em uma cerimônia de Candomblé na Bahia onde mães de santo dançavam em seu redor e lhe davam banho de pipocas; o banho de pipoca está ligado ao Orixá Obaluaê, que é o Orixá da cura, da saúde e da paz de espírito das religiões de matriz africana. Na postagem, a ex-primeira dama, ao mostrar a cena, afirmava: “Lula já entregou a sua alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne e nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje para não ser proibido de falar de Jesus amanhã".


Assim como no período colonial, a perseguição, a gestualidade, a indumentária, as danças e falares dos cultos, as religiões de matrizes africanas eram perseguidas nos moldes da Idade Média – hoje ainda o é. Entretanto, há mecanismos de defesa, falhos, mas há. E é importante ressaltar que a tentativa de matar, suprimir e exterminar a cultura afro na brasilidade nacional se faz a todo instante, e em todos os âmbitos. Em resumo, querem dizer: Não podem dançar aos Orixás!



* Mestre em Ciências Humanas (UFVJM) e Mestrando em Artes (UEMG). Escritor, pesquisador e professor.

109 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page