Por Suzana Nascimento Veiga*
“Vivemos e morremos como se fôssemos produzidas a partir de bestas, e não a partir dos homens; os homens são felizes e nós, mulheres, somos miseráveis; eles possuem todas as facilidades, descanso, prazer, riqueza, poder e fama, ao passo que as mulheres são incansáveis no trabalho, incessantes e com dores, melancólicas por falta de prazeres, desamparadas por falta de notoriedade” (Margareth Cavendish, Duquesa de Newcastle).
A primeira vez que assisti ao filme "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" eu fiquei impactada por uma narrativa tão maluca estar direcionada a contar tão profundamente sobre relações humanas. Agora, que revi o filme pela quinta vez, me sinto mais preparada para fazer uma análise feminista sobre a obra, especialmente centrada na figura da Evelyn, interpretada por uma das minhas atrizes favoritas: Michelle Yeoh.
Figura 1: Michelle Yeoh como Evelyn. Fonte: Google
Obviamente que, como qualquer obra de cinema, o filme está aberto a múltiplas interpretações e perspectivas. Estou apenas levantando uma das possibilidades entre elas, levando em consideração que o meu olhar sobre a obra é de uma mulher feminista e pesquisadora da História das Mulheres.
A figura de Evelyn me chamou muita atenção, pois ela é uma mulher, mãe e imigrante que luta com um negócio que consome seu dia a dia, um marido que é legal, mas não compreende as camadas de problemas que ela enfrenta, os cuidados com um pai idoso e uma filha com a qual Evelyn não consegue se entender.
A grande maioria das mulheres e, principalmente mães, podem se enxergar representadas ali por Evelyn: uma mulher cheia de potencial que foi esmagada pela vida difícil de ser uma imigrante, pelas lidas dos cuidados com idosos que são passados como cargas para as mulheres, uma casa e um pequeno negócio para administrar e uma maternidade que nem sequer sabemos se foi desejada.
Figura 2: Evelyn ladeada pelo marido, pai e filha. Fonte: Google
A apresentação da rotina diária de Evelyn nos faz pensar que talvez um multiverso nem seja assim tão caótico, haja vista a quantidade de coisas com as quais ela precisa lidar: da comida do pai e do atendimento aos clientes da sua lavanderia até a prestação de contas das receitas da empresa ao imposto de renda, o que faz sem nem ao menos ter o domínio total do inglês.
A opção dos diretores — conhecidos como “Daniels”, Dan Kwan e Daniel Scheinert — de utilizar o recurso do multiverso para mostrar diversas realidades onde Evelyn e os personagens coadjuvantes tem múltiplos papéis não me agrada muito, mas funciona de forma satisfatória ao apresentar certa ludicidade e uma linguagem atual para contar a história de um drama familiar e o conflito filosófico de Evelyn sobre quem ela é, o que poderia ter sido e como lidar com a realidade na qual ela vive, especialmente com sua filha, outra mulher lidando com as demandas do patriarcado até na figura da própria mãe.
Em alguns dos universos apresentados, Evelyn é atriz, cozinheira, lutadora de kung fu, cantora de ópera e até propaganda humana na rua. O recurso utilizado nos mostra o tanto de possibilidades que Evelyn poderia ter alcançado se a escolha dela, ainda na adolescência, não fosse se casar com Waymond, imigrar para os EUA e acabar na rotina onde ela se encontra aprisionada.
Interessa-me pouco se o multiverso agrega teorias científicas ou algo que a Marvel trouxe à moda, mas sim como os diretores utilizam esse recurso para contar uma história de possibilidades infinitas para uma mulher que, na linha do tempo central da sua vida, sente-se presa, sufocada, esmagada. Impossível não se identificar.
Figura 3: Evelyn em seu "momento de iluminação" sobre o que deveria fazer com a vida. Fonte: Google
Outro dia, lendo algumas postagens do diretor Daniel Kwan no Instagram, percebi como Evelyn foi criada. A mãe de Kwan, assim como Evelyn, foi a primeira de sua família a imigrar para os EUA. Ele diz que a mãe era criativa, gostava de música, artes, dança, mas renunciou a isso tudo por um curso superior “prático” e para poder criar seus quatro filhos da melhor forma possível, mesmo não tendo inicialmente nenhum desejo de ser mãe.
Figura 4: Evelyn da vida real? Fotografia da mãe do diretor Dan Kwan. Fonte: Instagram do diretor
Como eu escolhi estudar História das Mulheres pela minha trajetória, consigo me relacionar com a forma como Daniel Kwan roteirizou Evelyn a partir da experiência de sua mãe. Ele provavelmente cresceu vendo uma mulher que se tornou uma mãe maravilhosa, mas que tinha um potencial frustrado de tantas coisas que ela poderia ser e ter feito e que, possivelmente, teve que lidar com essas frustrações, enquanto equilibrava as várias expectativas depositadas sobre ela enquanto esposa, mãe, filha e imigrante.
A maternidade de Evelyn é bonita em alguns momentos, mas é principalmente dolorosa. Observando por um viés feminista, Evelyn sente que falhou ao escolher o caminho que a levou até ali e que cortou suas possibilidades de ser outras coisas. Ela sente — e é relembrada cotidianamente pelo pai — que falhou como filha e é uma fracassada. O pai coloca esse peso sobre ela que, por sua vez, reproduz isso em sua relação com a filha Joy, criticando sua sexualidade (a jovem é lésbica), seu peso, suas tatuagens e o fato dela haver desistido da faculdade.
Figura 5: A filha de Evelyn, Joy, e a namorada. Fonte: Google
Na sua relação com o pai, pesa o patriarcado asiático, com suas normas e estereótipos do que significa ser uma boa filha e uma boa mulher naquela sociedade, algo que Evelyn rejeita ao fugir com Waymond e imigrar para os EUA. Na relação de Evelyn e Joy, pesa um outro conceito desenvolvido por teóricos nos EUA e chamado de "Model Minority", ou Minoria Modelo.
Esse conceito foi moldado após a passagem do chamado “Perigo Amarelo”, representado pelos imigrantes asiáticos nos EUA durante o período entre guerras. Posteriormente, essa minoria começou a ser vista como um grupo que incorporou o “sonho americano”, alcançou sucesso e, tecnicamente, já não representaria mais uma ameaça à ideia de sociedade daquele país.
Esse termo começou a ser trabalhado a partir de um artigo de 1966 do sociólogo William Petersen e, posteriormente, ganhou diversos trabalhos nas ciências sociais com definições do que significava. Segundo a historiadora Ellen D. Wu, esse mito da minoria modelo é extremamente problemático, ofensivo e racista, e consiste numa política de mudança de atitudes dos americanos brancos em relação aos asiáticos amarelos após a Segunda Guerra, ao passarem a enxergar os asiáticos como incorporados ao sistema, passivos e, principalmente, diferente dos negros. Antes disso, eles eram vistos como “comedores de ratos que fumavam ópio”. Ellen D. Wu demarca que:
"O mito é pernicioso por duas razões principais. Primeiro, achata variações sociais, políticas, ideológicas etc. entre asiático-americanos, e assim esconde problemas reais como pobreza e imigração ilegal. Segundo, o estereótipo posiciona asiático-americanos como 'definitivamente não-negros', isto é, polariza asiático-americanos e afro-americanos. O argumento implícito no mito é que outras minorias, especialmente negros, são culturalmente débeis, logo eles são culpados pelos próprios problemas – e não a longa história de segregação, violência e discriminação racial", critica Wu. A lógica bizarra é: se os asiáticos batalharam e conseguiram sucesso, os negros não conseguem porque não querem. O que está em jogo é a tal meritocracia.”
Entretanto, diversos asiáticos têm incorporado o discurso meritocrático e as altas expectativas depositadas sobre as comunidades de imigrantes, assim cobrando dos filhos que se enquadrem nesse estereótipo da minoria modelo. Isso combinado com as normas de sociedades budistas e confucionistas do leste asiáticos, como a chinesa (no caso do filme) — que exige reputação ilibada, especialmente das mulheres, e que elas sejam boas mulheres, filhas, mães e esposas —, constitui-se no combo para a tensão e as brigas constantes entre Evelyn e Joy, que não conseguem se entender e se machucam emocionalmente de forma constante.
Sobre essa questão, especialmente em se tratando de mulheres imigrantes chinesas, recomendo a animação ‘Red: crescer é uma fera”, dos estúdios Disney. Apesar de ser uma fábula contaminada pela fórmula hollywoodiana, ainda assim existe uma narrativa ali que mostra como as meninas são moldadas e controladas, especialmente quando chegam à uma suposta maturidade física e sexual representada pela primeira menstruação. O filme exibe bem como as próprias mulheres são encarregadas de controlar o comportamento umas das outras (especialmente mães com as filhas), para se encaixar no duplo padrão patriarcal asiático e norte-americano como mulheres imigrantes.
Em ambos os filmes, podemos ver a deterioração das relações entre mães e filhas devido a exigência de controle de si e das filhas mulheres pelas instâncias patriarcais das quais são colocadas como reprodutoras. Evelyn se acha uma decepção para seu pai e deposita suas expectativas e frustrações na filha; e Joy acredita que estragou as possibilidades inúmeras que sua mãe poderia ter tido se não tivesse que gestar, parir e materná-la. Isso constrói uma barreira entre ambas.
O filme, então, nos conduz por uma narrativa quase de super-herói, multiverso e grandes plots sobre salvar o mundo. Mas a questão central são as relações humanas ali presentes e a necessidade de uma mulher de fazer as pazes com suas escolhas e ressignificar sua relação com a filha, que sofre sendo alvo da frustração dessa mãe que se considera uma falha como filha, esposa, mãe e ser humano.
A película nos apresenta, dessa forma, uma possibilidade de diversas reflexões e toma como alvo a vida de duas mulheres que lutam com diversos problemas sistêmicos do patriarcado: a falta de perspectiva, a pobreza que obriga a imigrar, a maternidade e o cuidado compulsório com o pai idoso, que despreza a filha por suas escolhas, além de tantas outras questões com as quais é possível se identificar quando se é mulher e se é atravessada por elas.
Mesmo que você, como eu, não seja fã de multiversos e narrativas muito no tom Marvel, esse filme pode ser interessante por criar espaço para reflexões importantes sobre ser mulher, esposa, filha e mãe em uma sociedade patriarcal e como é importante o processo de encontrar a si mesmo, respeitar quem se é e, assim, abrir espaço para se humanizar e humanizar outras mulheres.
REFERÊNCIAS:
https://www.vice.com/pt/article/787gka/o-mito-da-minoria-modelo
* Pesquisadora, escritora e historiadora. Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
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