
Por Alexandre Gossn*
O ex-representante do Ministério Público Federal, o procurador da República Deltan Dallagnol, fora cassado no dia 16 de maio por acórdão do TSE em decisão unânime.
Deltan fora eleito deputado federal na esteira do discurso anticorrupção após colecionar uma miríade de polêmicas enquanto procurador da operação Lava Jato.
Ocorre que a palavra polêmica é sem dúvida um eufemismo: Dallagnol fora acusado de inúmeros abusos contra réus, investigados, condenados e até mesmo advogados. Por conta dos abusos de que fora acusado por inúmeras pessoas, teve contra si a instauração de 15 processos disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, instituição de controle externo das práticas das promotorias do país.
As provas eram robustas e iam desde combinar diligências, pleitos e sentenças com juízes (sendo ele o representante do órgão acusatório) até a utilização de escutas ilegais contra réus, investigados e advogados. Deltan também ficou conhecido pelo proselitismo religioso, bem como pelas ações de marketing da operação Lava Jato, entre elas o lamentável episódio do Power Point repleto de acusações e nada de evidências.
Dallagnol também despertou indignação ao propor a instituição de um fundo composto de verbas recuperadas da corrupção que somaria vários bilhões de reais e seria gerido por ninguém menos que… ele, o próprio.
Transformando o necessário combate à corrupção (que se faz com racionalismo, legalismo e boas práticas institucionais) em cruzada moral e fundamentalista (com direito a frases de autoajuda e jeito 'talebânico'), Deltan cruzou os limites legais, éticos, morais e até humanitários, e para supostamente combater a corrupção… se corrompeu.
As mensagens vazadas que trocava com os juízes da operação são escabrosas. Podemos ser tentados a pensar que para combater o crime se faz necessário usar todos os recursos, mas a questão é que se usarmos “todos” os recursos, nós é que estaremos a cometer crimes.
Há também uma forma bastante prosaica de entender o tamanho das violações cometidas por Deltan e Moro: remova a Lava Jato e imagine uma situação simples. Um acidente de trânsito. João bateu na traseira do seu carro e fugiu. Você o acionou no Juizado Especial Cível. Então, no dia da audiência de julgamento, você e seu advogado descobrem que o Juiz da causa se corresponde com o advogado da parte contrária, e até o orienta sobre como peticionar, o que postular e como atuar na audiência. O que acharia disso? A justiça estaria preservada? A relação triangular autor / Juiz / réu seguiria mantida? E a equidistância entre o Juiz os postulantes? E a inércia jurisdicional?
A verdade, amigos e amigas, é que os princípios e garantias fundamentais só parecem vãs abstrações quando longe de serem aplicados ou se orbitam casos rumorosos e que envolvem pessoas poderosas e extravagantes. Mas quando falamos de furto de galinhas, vazamento do vizinho ou nome sujo, a abstração ganha concretude, vida e cores bastante palpáveis.
Ninguém gostaria de ser litigante ou advogado em um processo patrocinado por Deltan e presidido por Moro, porque eles subvertiam as normas constitucionais das regras do jogo e corrompiam as suas próprias funções judiciárias.
O TSE agiu bem e creio que dificilmente essa decisão será derrubada, porque a fraude (instituto do direito civil como bem leciona a sentença) ficou cristalina: Deltan se exonerou para fugir das sanções que enfrentaria pelos seus desmandos apontados nos 15 processos contra si. E buscou um mandato para se refugiar no foro com prerrogativa de função (chamado vulgarmente de foro privilegiado). Sublinho que este julgamento foi eleitoral, logo, o procurador não foi condenado criminalmente, mas agora sem o foro, poderá ser investigado e denunciado junto às varas comuns da Justiça de primeira instância, tanto na seara civil como penal.
Olhando pelo prisma das ciências sociais, a ascensão meteórica e queda brusca de Deltan evocam duas personagens que tentaram impor uma visão fundamentalista da vida e para isso impuseram práticas políticas e jurídicas radicais:
Robespierre, o regente do período do Terror da França Revolucionária (nos anos 1790), que, segundo algumas fontes, sozinho condenou à morte mais de 500 pessoas;
Harvey Dent, o fictício promotor de Justiça da DC Comics, que, na clássica HQ “Longo dia das bruxas", passa a usar métodos violentos e ilegais para combater a criminalidade em Gotham City.
Em ambos os casos, o final não é feliz. Deltan fugiu do MP para tentar escapar à punição e terminou sem o cargo de procurador e também sem o mandato de deputado.
E Harvey? Rompeu a parceria com o Gordon teve o rosto desfigurado por ácido quando o mafioso Salvatore Maroni o ataca em pleno julgamento.

Imagem 01: Harvey Dent
Harvey que já tinha tido a alma corrompida pelo fundamentalismo, obsessão e terror contra o crime, passa a ter as feições destruídas pelo ataque, desenvolvendo um distúrbio de dupla personalidade. A verdade é que o ataque com ácido só desfigurou o rosto de Harvey, pois sua alma já estava pútrida. É como se a maldição de Dorian Gray pairasse sobre Dent, e após descoberto o quadro no caso da obra de Oscar Wilde e os abusos nas investigações no caso de Dent, a deformidade do rosto apenas anunciou a deturpação moral que já havia assumido o controle das ações do procurador de Gotham.
Na literatura e na sociologia da arte, Harvey é o caso clássico do cavaleiro branco decaído, o herói de pés de barro ou como o roteiro de The Dark Knight, obra prima de Christopher Nolan (na brilhante película com Heath Ledger e Christian Bale), fala para descrever Dent: “ou se morre como herói, ou se vive o suficiente para se tornar o vilão".
E Robespierre? Após insuflar a revolução francesa (1789), o advogado francês passou a liderar o movimento, o levando ao período chamado Terror, onde as pessoas encontravam monarquistas em cada esquina, armário ou atrás da porta. Milhares foram assassinados, presos e tiveram bens confiscados sem nenhum zelo legal. Como isso terminou? Todo o entorno de Robespierre passou a ficar com medo de se tornar a próxima vítima e a própria população passou a considerar o líder revolucionário abusivo e tirânico, de modo que a própria Revolução engoliu-o, como o monstro que engole quem o alimentou. Robespierre foi guilhotinado.

Imagem 02: Robespierre
Por tudo que se apurou até agora, para você Deltan está mais para Harvey ou Robespierre? Uma combinação de ambos?
Parafraseando Sartre… o inferno / a corrupção são os outros.
Até a próxima newsletter.
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* Pesquisador e Doutorando em Ciências Sociais junto ao Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra, com ênfase em Filosofia Política e Autoritarismos Contemporâneos. Escritor, Mestre em Direito Ambiental e Advogado.
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