Por Williem da Silva Barreto Júnior*
A hermenêutica é um ramo da filosofia que se ocupa do estudo da interpretação e, como tal, é aplicável às artes, à literatura e também ao direito. Nesse último, a sua relevância é manifesta, tendo em vista as necessidades históricas do ser humano de elaborar e interpretar regramentos de conduta.
Com efeito, a hermenêutica esteve atada aos postulados puramente formais do positivismo e às premissas da filosofia da consciência durante séculos. No entanto, com o advento do Estado Democrático de Direito e do pós-positivismo, que privilegia os princípios em detrimento das regras, vislumbra-se uma mudança de paradigma, que dota a atividade interpretativa de mecanismos hábeis a enfrentar, sem referenciais subjetivos explícitos, os problemas sociais e jurídicos típicos da contemporaneidade.
No campo da filosofia do século XX, observa-se uma mudança paradigmática intitulada giro ontológico-linguístico, promovido por filósofos do quilate de Ludwig Wittgenstein, em “Investigações Filosóficas” e Martin Heidegger, em “Ser e tempo”. Para estes pensadores, guardadas as suas devidas peculiaridades teóricas, a linguagem não é mero elemento intermediário entre o sujeito e o objeto, senão a própria existência humana, que se estabelece mediante processos comunicativos de dimensão intersubjetiva. Passa-se então a compreender que a linguagem é protagonista nas relações humanas em geral.
Também Hans-Georg Gadamer, com “Verdade e método”, é um dos responsáveis por alçar a linguagem ao status de condição de possibilidade, elemento dinâmico e de cunho intersubjetivo. Sua teoria, a hermenêutica filosófica, não sendo método, prescinde da linguagem entendida como descritiva da relação entre sujeito e objeto, que estabelece uma barreira para se conhecer como são as coisas em si. Segundo Gadamer, a linguagem é experiência de mundo, na qual o intérprete, inserido em situação hermenêutica, atribui novos sentidos aos textos (não apenas os escritos), trazendo em si a historicidade e a tradição que lhe são imanentes, num contexto marcado pela fusão de horizontes de sentido.
Tendo por norte esse novo paradigma, surgem teorias jurídicas de cunho hermenêutico, que não admitem a ideia de limitação formal da linguagem e repelem interpretações fundadas na subjetividade do intérprete. Esse conjunto de autores representa, no pós-Segunda Guerra, um movimento histórico de desconstrução dos postulados positivistas, intitulado pós-positivismo.
No direito, não se trata mais de encontrar um sentido inerente ao texto legal, como pensam os positivistas, mas de atribuir-lhe sentido, tendo em conta os limites impostos ao intérprete pelo próprio texto. O pós-positivismo não é, portanto, corrente ou movimento jurídico uniforme, mas fenômeno histórico vinculado à necessidade de a ciência do direito se desenvolver sem o jugo das velhas premissas típicas da filosofia da consciência.
Num contexto de Estado Constitucional de Direito, notabilizado pelo maior equilíbrio entre os Poderes, ganham força as teorias de natureza principiológica, que rejeitam a necessária impossibilidade de entrelaçamento entre direito e moral. Cada teórico, a seu modo, afirma o direito como construção social fundada em princípios constitucionalmente consagrados, que funcionam como farol para a resolução de controvérsias jurídicas.
Dentre esses autores destaca-se Lenio Streck, autor de “Verdade e consenso” e artífice da Crítica Hermenêutica do Direito, que se coloca, segundo palavras do próprio autor, no intermédio entre o objetivismo e o subjetivismo em âmbito hermenêutico. O jurista brasileiro utiliza como base, em linhas gerais, as ideias de Friedrich Müller, Gadamer e Ronald Dworkin, com o objetivo de construir uma teoria da decisão judicial apartada de premissas exclusivamente normativas, típicas do positivismo em seu sentido estrito, bem como do voluntarismo desenfreado, marca indelével do realismo.
Streck parte, portanto, da ideia de que enunciado normativo e norma são institutos diversos. O primeiro constitui o próprio comando inserto pelo legislador no ordenamento jurídico, enquanto a segunda é produto da atividade hermenêutica em concreto. Com efeito, de um enunciado normativo, tendo em vista a análise fática em sua concretude, podem surgir diversas normas.
Os fenômenos da interpretação e aplicação do direito, segundo a crítica hermenêutica, não podem ser rigidamente separados, pois o processo interpretativo é dinâmico e condicionado pela dimensão intersubjetiva inerente à linguagem. Assim, tal qual Gadamer, Streck roga ao intérprete que permita ao texto dizer-lhe algo, ao invés de buscar em sua estrutura um sentido hermenêutico pronto.
As críticas básicas de Streck ao atual contexto da interpretação jurídica residem no que ele chama de solipsismo, conceito cunhado para descrever a atividade hermenêutica vinculada às premissas da filosofia da consciência, superadas na esfera filosófica, porém muito presentes nas atividades judicantes Brasil afora. Daí a sua manifesta reserva quanto a institutos acolhidos pela legislação e prática judicial brasileira, como o emprego inadequado de teorias estrangeiras à realidade local.
Um dos grandes problemas hermenêuticos apontados por Streck e enfrentados pelo sistema de justiça brasileiro decorre da imprecisa utilização de teoria estrangeiras com o objetivo de fundamentar decisões exaradas ao arrepio da Constituição. Tal fenômeno, além de depor contra os parâmetros estabelecidos pelo Poder Constituinte, ocasiona um quadro de permanente instabilidade institucional, em especial no que se refere à atuação do Supremo Tribunal Federal.
Referida prática não raro implica em ativismo judicial, que se consubstancia na utilização de prerrogativas judicantes para legitimar deliberações alinhadas aos padrões de consciência dos julgadores, algo absolutamente incompatível com a proposta da hermenêutica pós-positivista. Com efeito, o ativismo judicial é responsável pelo agigantamento do Poder Judiciário e, via de consequência, responsável por sistemáticos abalos ao princípio da separação dos Poderes constituídos.
O exemplo mais claro desse manejo inadequado de teorias estrangeiras deriva do indiscriminado e equivocado uso do instituto da ponderação, procedente da teoria de Robert Alexy. Em linhas muito gerais, o jurista alemão entende necessário, para a resolução de conflitos entre princípios constitucionais, o emprego da técnica da ponderação, que é operacionalizada pela aplicação da proporcionalidade.
No Brasil, a técnica da ponderação e o princípio da proporcionalidade são frequentemente utilizados como argumentos meramente retóricos, a fim de embasar sentenças judiciais fundadas nas convicções pessoais dos magistrados. E os casos não são isolados; o Supremo Tribunal Federal vem recorrentemente lançando mão destes conceitos de maneira teoricamente deturpada, para fundamentar decisões de relevância para a sociedade brasileira.
Na verdade, a utilização distorcida da teoria alexyana, cujo objetivo real é encontrar a resposta correta para situações jurídicas conflituosas envolvendo princípios, acaba por recair no realismo jurídico, de dimensões assumidamente subjetivistas. Cita-se, como fonte de pesquisa autorizada a respeito, a obra “Ponderação e arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo STF”, em que o autor, Fausto Santos de Morais, demonstra categoricamente, em dezenas de casos analisados, a equivocada utilização da teoria de Alexy, que funciona como mero pano de fundo para amparo a decisões arbitrárias, notoriamente desconformes com a principiologia constitucional.
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* Doutorando (UNILASALLE/RS), Mestre (UNIFG/BA) e Graduado em Direito (UESB/BA). Advogado, professor e pesquisador.
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