Por Alexandre Gossn*
Os mortos pelas enchentes, inundações e deslizamentos pararam de respirar antes de ontem, mas começaram a morrer bem antes, assim como os que ainda irão morrer estão morrendo desde já.
Por quê?
O déficit habitacional que aflige nosso país não é uma deficiência técnica ou falha de planejamento por incapacidade dos governos.
Como já ensinava o Prof. Vilaça da USP, a falta de moradia no Brasil é uma decisão deliberada, uma opção feita por quem detém o poder econômico e político.
Quem morreu antes de ontem, começou a morrer quando retificamos rios (aumentando exponencialmente a velocidade das águas e povoando as suas margens sem respeitar seu fluxo e refluxo) ou quando permitimos que pessoas vivam nas encostas (pobres e ricos, frise-se) da Mata Atlântica, bioma destinado a passar, em algum momento, por processos de escorregamento.
Quem morreu antes de ontem, começou a morrer quando permitimos a impermeabilização das nossas cidades em níveis alarmantes e sem estudar as suas consequências, ou quando deixamos de realizar obras de macrodrenagem porque estas não rendem votos.
Quem ainda morrerá no futuro começa a morrer desde hoje, quando não respeitamos o Estatuto da Cidade, quando ignoramos as necessidades de cada bioma e permitimos que as leis ambientais sejam retalhadas, desprestigiadas e o princípio constitucional da não regressão da proteção ambiental seja feito de letra morta da Constituição.
Quem morreu antes de ontem começou a morrer desde que não nos rebelamos contra o nosso iníquo pacto social, onde tributamos o consumo e os mais pobres e deixamos vigente um sistema tributário regressivo que não cobra impostos decentes sobre a propriedade e a renda.
Quem morreu antes de ontem também começou a morrer quando ignoramos as alterações climáticas que a humanidade está introduzindo no planeta; e, como hoje é público e notório na Academia, a desigualdade social promove também desigualdade ambiental, ou seja, os mais desfavorecidos pagam a conta de quem realmente promove as alterações climáticas.
Eventos extremos como os de antes de ontem se tornarão cada vez mais comuns e a sociedade – via governos, organizações civis, defesa civil, corpo de bombeiros e seguradoras – terá que se reinventar.
Por fim, gostaria de recordar que, em março de 2020, registramos um evento praticamente igual, com centenas de mortos e milhares de desabrigados.
O que aprendemos?
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* Pesquisador e Doutorando em Ciências Sociais junto ao Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra, com ênfase em Filosofia Política e Autoritarismos Contemporâneos. Escritor, Mestre em Direito Ambiental e Advogado.
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