Por Ricardo Cortez Lopes*
Breaking Bad (BB) é uma série consagrada já faz muitos anos, e não é sem motivo, já que ela traduz muitas questões humanas para a dramaturgia, constituindo-se na mais legítima manifestação de arte. Better Call Saul (BCS), um spin of (mas que poderia ser considerado uma prequela), acabou de terminar, mas é igualmente impactante e viciante. Mas por que ambos viciam tanto? Vamos ver que eles funcionam como uma espécie de catarse pela característica que possuem em comum, tornando-os personagens que ilustram muito bem a ação humana e que se pretende altruísta (mesmo que não seja).
Antes de tudo, eu tenho uma teoria de porque o estilo do escritor, Vince Gilligan, é tão bacana, e queria dividir com vocês. Existe a utilização massiva de metalinguagem nas cenas, cada uma delas tem um significado naquilo que se diz e naquilo que mostra ao olhar, o que torna algo interessante tanto para uma apreciação densa quanto para quem exerce um consumo rápido. Todos esses detalhes se amarram pelos baits: primeiro joga uma situação muito absurda para atrair a atenção do espectador e, posteriormente, desenrolar essa estranheza que dá a sensação de um enigma desvendado. Portanto, a história sempre começa em media rex, que nem Os Lusíadas.
Walter White, ao longo das temporadas (não sei dizer quantas delas porque a série começou bem na época da Greve dos Roteiristas), vai se transformando em Heisenberg, um codinome que remete ao princípio da incerteza e que desestabilizou a própria ciência. James McGill vai se transformando, lentamente, em Saul Goodman, mas precisa abdicar dessa identidade por conta dos atos de White em BB, e então ele começa a sua série própria, com muitos flashbacks, o que ressignifica o próprio título porque é Saul que vai resolver todos os conflitos a partir de uma identidade nova para Jimmy, um indivíduo cheio de dilemas. A relação das séries, apesar de uma continuidade temporal, é também de um ciclo sobre a tragédia humana, como veremos adiante.
Ambos protagonistas possuem um desejo de grandeza: Walter, com o seu império de metanfetamina, e Saul, com o seu nome estampado na televisão. Mas Saul já estava completo em BB, precisando implodir apenas no final da série. Já em BCS, James McGill demonstra que quer seguir o caminho do irmão, um “ortodoxo” no Direito; porém, essa sua retidão lhe rende muitos desgostos no início da série, e, aos poucos, ele vai agindo levemente à margem das leis ou da ética, o que desembocará na figura de Saul Goodman, que trabalha de mãos dadas com o crime organizado, lavando dinheiro para criminosos perigosíssimos.
A questão é que mesmo agindo contra a lei, eles passam, inicialmente, uma ideia de dever, e não de desejo pelas transgressões — elas são necessárias, até porque os protagonistas já perderam tudo. A lei escrita não parece ser um valor absoluto: Walter quer o bem de sua família; e Saul, enquanto McGill, deseja de fato o bem de seus clientes — e isso se comprova porque ele começa a ter sucesso escrevendo testamento de idosos, que encontram nele um contato negado por suas próprias famílias.
É claro que Heisenberg aprecia a grandeza de ser o melhor produtor e os traficantes o disputarem; e que Saul gosta de ver sua sala sempre cheia de clientes. Porém, eles genuinamente desejam criar o bem para com quem se importam, e as consequências ruins ambos tentam absorver para si mesmos. No entanto, os episódios vão mostrando que isso é impossível e outras pessoas também sofrem as consequências dos riscos que tomam, mas eles não parecem acreditar, pensando cada nova oportunidade como um momento de virar o jogo. Lembram muito, portanto, o personagem Evan, de Efeito Borboleta, que age da mesma maneira voltando no tempo constantemente.
Walter de fato cria uma outra identidade para afastar suas atividades paralelas das de sua família: é o Heisenberg. Ele faz de tudo para manter essa separação, porém, o que ocorre de fato é que seu cunhado acaba morto e sua família o odeia no fim da série. Ele de fato queria que a família apenas usufruísse do seu dinheiro, mas coisas ruins aconteceram a reboque, como o envolvimento com um grupo neonazista.
Saul pensa do mesmo modo. Ele realiza pequenas trapaças, como presentear com um bicho de pelúcia a assistente do Tribunal com o fim de obter uma data de audiência favorável ou a mudança em um documento do cliente do irmão para induzi-lo ao erro no tribunal. Ou seja, suas transgressões não se tratam propriamente da busca de benefício próprio ou de obtenção de grandes ganhos para si mesmo, porém essas atitudes levam a consequências terríveis e que vão movendo a trama.
Como se pode perceber, as séries teorizam muito fortemente a questão da escolha. Isso porque ambos poderiam ter escolhido não agirem contra a lei: um amigo antigo se oferecera para pagar o tratamento para o câncer de pulmão de Walt, e Saul estava com uma carreira muito bem-sucedida dentro de um grande escritório de advocacia. Ou seja, em certo momento, a motivação para a transgressão se foi, porém ficou certa “corrupção”, certo gosto do “topo”.
Ou seja, discursos que afirmam que Walter White seria a representação dos professores sub-remunerados estariam completamente enganados. Afinal, não foi a falta de dinheiro que o empurrou para o crime, foi justamente a vontade de sentir-se maior do que um homem comum que o levou e o manteve na transgressão jurídica.
Agora, as atitudes foram também apenas escolhas pessoais? As séries mostram dois mundos: o do cidadão probo que possuem negócios ilícitos de fachada, tal como o vilão Gustavo Fringe. É um mundo duro onde as pessoas mentem umas para as outras, tal como os donos da loja de instrumentos musicais fizeram com Jimmy. É um mundo cruel onde muitas pessoas desonestas logram êxito com objetivos egoístas. Assim, quem os rouba seria uma espécie de Robin Wood, ou, no mínimo, estaria subtraindo recursos de pessoas potencialmente agressivas.
Por isso também não acho que a série incentive ou glorifique o crime. Afinal, apesar de lograr algumas conquistas mais rapidamente do que indivíduos dentro da lei, há muitos mecanismos de ocultamento de renda — sim, os criminosos têm medo da investigação policial; na obra ela é implacável, o que é uma preocupação a mais. Trata-se de uma guerra contra o Estado Moderno que é impossível de ser ganha. No máximo, é possível ludibriar esse poder, mas o criminoso verá o seu fim ou nas mãos da polícia ou na mão de outros criminosos.
E você, já viu BCS e BB? Concorda com a minha leitura? Escreva um comentário e vamos trocar uma ideia!
* Escritor e Pesquisador. Doutor, Mestre e Graduado em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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